Bárbara Alcântara (com colaborações de Giovana Moraes, Daiane Tadeu e Ingrid Watanabe)
É pedrada atrás de pedrada: desde as duas séries da Netflix, “The Get Down” e “Luke Cage”, até a recente notícia do disco póstumo do Sabotage, que já está disponível no Spotify. O ano de 2016 está marcado por uma porção de lançamentos, referências e homenagens ao hip hop. Se, por um lado, toda essa repercussão colabora para a difusão dessa cultura de resistência e contestação social, os projetos de grande impacto também retratam o evidente protagonismo masculino na cena. Por essa perspectiva, infelizmente ainda não há nada novo sob o sol.
Onde estão as MCs, DJs, produtoras e tantas artistas que também têm papel essencial e uma caminhada maravilhosa a ser contada e divulgada? Tentar sobreviver por meio da música, ainda por cima em um ambiente tão marcado pelo preconceito, é um drama de muitas mulheres ao redor do País.
A partir de sua música “Maria: Walk This World with Me”, a paulistana Paula Manzano, mais conhecida como Sistah Chilli, conta um pouco da história e do caminho percorrido por ela até conseguir produzir o primeiro EP em estúdio.
A trajetória
Paula, ou Chilli, sempre cantou rock steady, northern soul e fazia uns freestyles em festas de Sound System. Até que uma tragédia mudou drasticamente sua vida. Ao dar à luz seu primeiro filho, ambos foram vítimas de descaso hospitalar. “Passei 36 horas em trabalho de parto com a bolsa rompida. Meu filho era prematuro e, mesmo assim, fizeram parto normal. Ele tem paralisia cerebral por causa disso”, ela conta, enquanto vai gradualmente embargando a voz. Por ter vivido essa situação, acabou conhecendo pessoas de fora da bolha alternativa da qual fazia parte. Mulheres que, em sua maioria, eram abandonadas pelos companheiros quando tinham filhos com algum tipo de deficiência. “Convivendo com elas, percebi que muitas não tinham acesso à alfabetização, apanhavam em casa. Ouviam coisas como ‘não servem nem para parir’. E, no entanto, são mulheres fortes, mulheres que acordam cedo, batalham, brigam e matam por um filho.”
Foi então que a jovem percebeu que grande parte das meninas nos espaços que frequentava (punks, skinheads, rappers) tinha acesso à informação, fosse por meio de coletivos, virtualmente, ou por meio da própria contracultura. Mas era preciso achar uma forma de atingir também aquelas outras mulheres que passou a conhecer: negras, em sua maioria, e periféricas. Precisava divulgar suas ideias para além daquele espaço do qual fazia parte. Encontrou no rap a solução. Com perceptível animação, Paula conta que, hoje em dia, até o dono da padaria canta trechos de sua música. Isso significa que seu som tem sido não só ouvido, mas também cantado por aí.
“Maria – Walk This World with Me”
“Embora eu escreva dia e noite, [Maria] foi o som mais treta pra eu escrever porque ele fala, sim, de uma realidade de vivência cotidiana espelhada na minha mãe, na minha vivência hoje, e o que a gente pretende”, ela conta. A ideia era reunir presente, passado e futuro em uma só música, e mostrar como o feminismo cresceu, se expandiu até atingir bem mais mulheres do que antigamente, e como pode ir além se trabalharmos juntas.
Vou contar para vocês a história da Maria
desde o princípio condenada na costela de um otário
De noite só trampava, de dia nem dormia
e ainda era tachada de “Maria, a vadia”
Que não tinha acesso a livro, que dirá de poesia
E a sociedade aponta: “a Maria, a vazia”
“Tá tudo bem, amanhã é outro dia
porque a pia tá lotada e acorda cedo, queridinha”,
Já dizia a patroa, sempre dando risadinha
Maria se cansava de toda essa ladainha
“Não quero mais isso pra mim, preciso pôr um fim,
eu não mereço mais ser maltratada assim”
Paula nasceu com uma deficiência, tratável, na perna. Tinha dificuldades para andar e, por isso, precisou de atenção especial até os 4 anos de idade. Durante todo esse tempo, sua mãe a carregava em uma espécie de “canguru” enquanto fazia faxina para uma família – numa carga horária de aproximadamente 13 horas diárias. Essa foi a única solução viável encontrada, já que não tinha acesso a uma cadeira de rodas e nem dinheiro para o tratamento da filha. Paula ainda era criança, mas algumas cenas ficaram marcadas em sua memória: “No final do dia, essa patroa virava pra ela e falava: olha, Maria, muito obrigada, mas amanhã você tem que chegar mais cedo e tenta não trazer sua filha dessa vez”. Pequena e sem entender muito bem o que a patroa queria dizer, indagava para a mãe “Por que ela te chamou de Maria se o seu nome é Rosângela?”.
Resolveu usar esse nome em sua música porque percebeu que todas as mulheres, principalmente da periferia, têm um pouco de Maria. “O que o som propõe é que ser uma Maria não é ruim.” E completa: “a gente tem condições de ser o tipo de Maria que quiser: a Maria sem vergonha, a Maria educada, a Maria lavadeira, a Maria distraída… A gente pode ser o que a gente quiser, mas a gente que impõe”.
E Maria conheceu como elas loucas,
de cabelos coloridos, as tais feministas
Já não se sentia mais só, muito menos esquisita,
deixando para trás aquele bando de vermes,
fascistas e falsos moralistas
Irmãs que ajudavam todos os dias em suas lutas
e vibravam dia após dia com sua conquista
Maria só crescia, empoderava e se tornava
cada dia mais e mais otimista
“Eu quero é isso pra mim, e eu vou até o fim,
nem que pra isso eu tenha que morrer, sim”
Quando resolveu embarcar no mundo do hip hop, Paula se deparou, logo de início, com uma dificuldade: por cantar rap em base de skinhead reggae, era considerada muito skinhead para os rappers, e muito rapper para os skinheads. Apesar desse problema, diz nunca ter tido grandes dificuldades de interação. Foi sempre muito respeitada pela sua história de vida, pela sua batalha e pela humildade, que mantém intacta. “Hoje em dia tá meio difícil sair na rua, porque a galera acabou reconhecendo o trampo pelo virtual e, tipo, eu tô comendo num shopping e de repente tenho que parar, tirar foto, conversar. Eu recebo isso com muito carinho”, conta, dando risada.
Sempre muito otimista, a cantora diz que no hip hop underground as mulheres são respeitadas. Se não por livre e espontânea vontade, por pressão: “se tem uns caras que são babacas, a gente já tira de cena, fazendo uma retruca nas letras”. Um exemplo recente é a polêmica envolvendo a música lançada por Costa Gold e Marechal, “Quem Tava Lá”. Com rimas que menosprezam a participação feminina na cena, foi logo rebatido pela mc pernambucana Lívia Cruz, que diz “Eu não tô pra disputa/é pela luta/é pela nossa ascensão/sei nem quem cês são./Eu tava lá, sim/eu tava lá e nem te vi”.
Para Paula, o problema é que o hip hop, em geral, virou um produto midiático, que espelha e mantém bases culturais, como a “ostentação” e o machismo. Fala da mulher de uma forma pejorativa e se refere constantemente ao luxo e às drogas. “Acaba que a gente é o que a gente explana. Quando a gente repete, vira mantra, e, quando vira mantra, vira ideologia. As crianças querem também ter o luxo e tratar a mulher como elas ouvem”, resume.
É aí que entra o papel dessas MCs que têm surgido em várias partes do Brasil. “Acredito que hoje, no hip hop, na parte feminina, a gente tá tentando transmutar isso, saca? Tirar essa consciência ‘dos pivete’ de que é isso que te dá o topo. E não é, tá ligada?” Todas passam por dramas parecidos. “Acordo às 4 horas da manhã pra pegar um ônibus lotado com o meu filho”, narra, e prossegue após uma breve pausa em meio a lágrimas: “mas eu ainda enfrento cara que tenta encoxar, desrespeito em relação à deficiência de uma criança…” Acima de tudo, são mães, negras, periféricas, fora do padrão estético e, muitas vezes, lésbicas ou bissexuais. A música permite a elas conhecer essas outras mulheres, e ouvir suas histórias individuais. Isso mostra que elas não estão sozinhas, e nunca estarão. As experiências compartilhadas só dão mais força para continuar na luta. “A intenção é que a gente contamine as mulheres com força e com amor”, independentemente de a mensagem ser passada por meio do rap, do raggae, do funk ou de qualquer outra vertente musical.
Propagava, dia após dia, sua tese e teoria
que na sua veia corria e na garganta já nem sentia mais o nó
Sua mão já nem mais tremia, e na caligrafia do muro da vizinha
suas palavras ecoavam sem dó
Dizia para si mesma e para todas as Marias
que o sistema oprimia, mas que não estavam só
“Sozinha eu ando bem, mas com vocês, Marias,
pode apostar que eu caminho dia a dia bem melhor”
Uma grande diferença entre o rap feito pelas mulheres e pelos homens é que, enquanto eles falam muito de um mundo de ilusão, elas trazem a realidade. Isso porque “a gente troca muita figurinha entre si no hip hop, coisa que os caras não costumam fazer, porque é uma disputa de ego muito grande”, explica. A proposta delas é traduzir uma mensagem para as meninas e criar representatividade. É falar de igual para igual, se conectando com quem vem do mesmo mundo, passa pelas mesmas situações e tem os mesmos problemas que elas. Para ilustrar melhor, Paula cita duas grandes amigas, Issa Paz e Sarah Donato, do projeto Rap Plus Size, que, em um de seus sons mais conhecidos, falam “eu vou de leste a norte/eu vou de oeste a sul/e se não gosta do meu peso/vai tomar no cu.”. Na opinião dela, este tipo de letra é essencial porque “as meninas ouvem e falam: ué? Por que elas se gostam tanto, se acham tanto, sendo gordas? Por que elas se aceitam?” Isso as ajuda a questionar os padrões impostos pela sociedade sem precisar ler livros ou cartilhas sobre feminismo.
Além das mulheres do Rap Plus Size, muitas outras têm trazido em suas letras e seus trabalhos diferentes questionamentos em relação aos preconceitos sofridos. É o caso da Mc Luana Hansen, que tem obras que batem na tecla da homofobia, por ser lésbica, e do racismo, por ser negra e periférica. Souto Mc, Bárbara Sweet, BrisaFlow, Preta Rara, Yzalú e mais um monte de mulheres com trabalhos sensacionais, que deixariam essa lista infinita. Algumas são mais famosas, como a Karol Conká, que se apresentou ao lado da pequena Mc Soffia, na abertura das Olímpiadas esse ano no Rio. Outras não são tão conhecidas, como a Júlia Maria, de Volta Redonda (RJ). Cada uma, influenciada por essa rede feminina que se expande, se mantém firme no percurso. “Pode ser que, para os homens, a atuação das mulheres passe como apenas uma participação ou um acontecimento corriqueiro, mas, para nós, se trata de uma afirmação de espaço essencial”, diz Júlia. “É uma caminhada muito difícil e que exige de nós, mulheres, muita força de vontade para nos mantermos de pé. Se não houver uma real intenção de construir algío no hip hop, certamente as pancadas vão pesar mais do que a luta.”
Na opinião de Paula, ou Sistah Chilli, o que as mulheres precisam para construir um futuro cada vez mais próximo do ideal é entender que “a gente não precisa se amar, dar a mão uma pra outra e falar que seremos amigas pra sempre porque somos mulheres unidas, não”. “Eu tenho as meninas que eu não curto, não abraço a ideologia. Mas existe um bagulho que se chama empatia e respeito. Talvez eu não curta, porque eu não estou na pele dela. É diferente. É a mesma coisa que a gente falar sobre uma loira de classe média feminista ou de uma negra periférica feminista: uma é mais que a outra? Não, são lutas diferentes e cabe respeitar. Assim como eu posso ter empatia e respeito por uma transexual, eu nunca vou estar na pele dela. Então eu posso ser empática e apoiar, mas não posso tomar a luta dela.” E a rapper conclui com uma mensagem: “a gente vem sendo bem recebida e, quanto mais os homens vão explanando machismo e patriarcado, mais eles vão ficando pra trás, porque as pessoas estão começando a entender que isso não enche barriga, saca? Informação enche barriga, preenche sonho”. “Então, a gente vai nesse foco.”
Confira também a playlist “As Marias do hip hop”: