Flora Vieira e Nathan Sampaio
Indicado ao Oscar de Melhores Efeitos Visuais, Godzilla Minus One é a nova empreitada da produtora Toho para a franquia do monstro radioativo, entre nós desde 1954. Escrito e dirigido por Takashi Yamazaki, também responsável pelo CGI, o filme teve um orçamento calculado que varia de US$ 10 a 15 milhões. Seu primo americano, lançado em 2014 e considerado o reboot da franquia em terras ocidentais, em comparação, custou US$ 160 milhões.
Sua indicação não é à toa. Com um pequeno orçamento e uma equipe reduzida, os efeitos alcançam um primor técnico invejável a qualquer blockbuster produzido pelos Estados Unidos, num triunfo alcançado pelo diretor outras vezes, como em Lupin III: The First (2019). Competindo com o novo Missão Impossível – Acerto de Contas Parte 1 e Guardiões da Galáxia Vol. 3, ambos com orçamentos que beiram os US$ 200 milhões, o longa faz história na categoria e tem boas chances de vitória.
Em Godzilla Minus One, Koichi (Ryūnosuke Kamiki) é um veterano da Segunda Guerra Mundial que presenciou um monstro gigantesco matar quase todos os soldados de uma base japonesa, sendo um dos únicos sobreviventes. Nos anos seguintes ao ataque, ele tenta reconstruir sua vida junto de duas vítimas da devastação do Japão, Noriko (Minami Hamabe) e Akiko (Sae Nagatani). Porém, o sofrimento volta à tona quando Godzilla ameaça atacar Tóquio.
O filme surge como uma homenagem ao Godzilla de 1954, filme que iniciou a franquia e popularizou o Kaiju. Durante a produção do primeiro longa, os japoneses tentavam reconstruir sua nação após a devastação da guerra e do trauma das bombas atômicas. Com base nessa angústia, surge o monstro colossal que personifica o medo de um novo ataque atômico e as consequências sociais e ambientais que vieram do bombardeio. Mais do que uma história de criatura, a obra dos anos 1950 é um retrato de um povo destruído e amedrontado.
Com o passar do tempo, o significado original do monstro se perdeu, dando espaço para histórias mais leves e divertidas de lutas entre seres imensos, e o medo deu lugar à afeição. Mais recentemente, a Toho, produtora da narrativa de 2024, tem se empenhado em resgatar a origem do Godzilla, afinal seus temas ainda são atuais e merecem atenção. Essa intenção deu espaço para obras pesadas, angustiantes e amedrontadoras, no melhor sentido possível.
Shin Godzilla, de 2016, é o antecessor de Minus One e o reboot da franquia no Japão, que não recebia um filme novo desde Godzilla: A Batalha Final, de 2004. Diferente do mais recente, ele aposta numa versão do monstro que discute o desastre nuclear de Fukushima, em 2011, e a inércia do governo japonês diante do acidente. Dirigido por Hideaki Anno, o mesmo autor do anime Evangelion (1995), Shin é episódico e sem relação com o resto da franquia, um tanto errático, assim como seu monstro, cujo principal problema são as metamorfoses e seu potencial evolutivo infinito.
Enquanto Minus One escolhe criticar o império japonês e a cultura japonesa do sacrifício pela pátria, apostando em um final feliz, Shin coloca os pés no chão, enxergando que pouco mudou desde o fim da Segunda Guerra Mundial: a ameaça continua viva, e em constante mudança. O Godzilla de Minus One é belo e estático, enquanto Shin Godzilla é propositalmente feito para ser deformado, desconfortável e estranho ao cenário.
O longa é extremamente corajoso e ambicioso em sua abordagem. A suposta falha do jovem Koichi, no início da narrativa, representa o absurdo da cultura imperialista e belicista do Japão dos séculos XIX e XX. Esta falha, aos poucos, é transformada em virtude pela narrativa, quando ela valoriza, de forma direta e sem rodeios, a vida de cada um dos personagens que interage com o protagonista ao longo das duas horas de filme.
Engana-se quem pensa que a narrativa só se sustenta pela abordagem principal. A sutileza em que os traumas de Koichi são expostos por meio da relação dele com Noriko e Akiko permitem que se explore a tridimensionalidade do país no pós-guerra, seus conflitos internos e sua dificuldade em se desconectar do passado. A narrativa também dá abertura para que personagens como o cientista (Hidetaka Yoshioka) e a vizinha de Koichi (Sakura Ando) brilhem cada um à sua maneira, representando uma nação em profunda transformação, e que, aos poucos, percebe o absurdo que representam valores calcados no sacrifício pelo Imperador.
O enredo, quando usa os personagens para fazer esses paralelos, também conversa com o Japão do século XXI, que esconde seus crimes de guerra debaixo do tapete. Ao responsabilizar também o país por suas atitudes durante a Segunda Guerra, que levaram o Império a uma aliança com os nazistas, a narrativa cresce, inocentando e valorizando a vida dos indivíduos, que lutam contra uma nação retrógrada corresponsável, junto dos Estados Unidos, pela criação do Kaiju.
Coincidência ou não, Minus One surge no momento em que o universo compartilhado da Legendary, o Monsterverse, está em alta e essas duas visões sobre o Godzilla são antagônicas. Enquanto os Estados Unidos produzem filmes que associam a imagem da criatura a um salvador do planeta, o Japão mostra a devastação que esse ser poderia causar, uma briga ideológica para ver quem consegue cunhar na cultura pop o verdadeiro significado do monstro. Retomando às origens do longa de 1954, pode-se dizer que é uma disputa sobre a bomba atômica, na qual o país que a jogou tenta se justificar e a nação atingida mostra o trauma daquela experiência.
Takashi Yamazaki faz um trabalho sensacional na direção, pois há muitas referências visuais ao Godzilla original, tanto em enquadramentos quanto em composições de cena, o que funciona como uma bela homenagem a Ishirō Honda, diretor do primeiro longa. Outra proeza da condução é a empatia criada entre espectador e os humanos da trama, algo raro em filmes de Kaiju, mas essencial em Minus One: sem essa perspectiva, a trama perderia seu impacto.
Um dos artifícios utilizados perfeitamente por Yamazaki para construir essa empatia é mostrar a pequenez dos humanos perante o Godzilla nas cenas de ataque, porque nesses momentos, a projeção flerta com o cinema de desastre, em que a sobrevivência depende de um pouco de esperteza e muita sorte. Os ângulos escolhidos por Kozo Shibasaki para mostrar a criatura são magníficos, servindo para amedrontar e causar desconforto. Além disso, diferente da versão estadunidense, Minus One não esconde o monstrengo na escuridão: aqui ele aparece em toda sua magnitude em plena luz do dia, demonstrando que não há nenhum momento em que os personagens estão seguros.
A trilha sonora acompanha e auxilia a direção ao transmitir angústia, medo e pavor. Com seus acordes lentos e graves intensos, o compositor Naoki Sato enfatiza o suspense das cenas e deixa o espectador apreensivo para o que vai acontecer. Há ainda músicas mais energéticas usadas no clímax da história, que referenciam o tema original do Godzilla, composto por Akira Ifukube.
E caso o filme não lidasse com temáticas tão ricas quanto a valorização à vida, tão entranhadas na narrativa, seu final poderia ser interpretado como algo bobo, clichê e até como um dramalhão barato, mas não é isso que acontece aqui. A decisão de Koichi de continuar vivo, rompendo com a cultura vigente da época, e a sobrevivência de Noriko ao ataque do monstro marinho, é o desfecho feliz que o longa precisava para completar seu arco narrativo.
Godzilla Minus One é uma carta de amor aos fãs do universo do Kaiju, que recebem um prato cheio: personagens cativantes, raros em obras do tipo, efeitos especiais que deixam Hollywood com inveja e uma história que atinge onde dói, com dilemas importantes mesmo para o Japão do mundo atual. A Toho e o diretor Takashi Yamazaki criaram o monstro perfeito, e o colocaram no Oscar com menos de US$ 15 milhões. Os Estados Unidos ainda têm muito o que aprender.