George Harrison e a busca pelo transcendente em Living in the Material World

 

(Foto: Reprodução)

Raul Felipe

Quando se fala em rock, talvez a figura mais óbvia que nos venha em mente seja a da banda britânica Beatles. Os meninos de Liverpool esbanjavam talento e arrastavam multidões, mas todo começo possui um fim. O quarteto se separou em 1969 e seus integrantes seguiram carreira solo. O texto de hoje vai tratar sobre George Harrison, o mais talentoso dos Beatles. Habilidoso e criativo, era o terceiro na linha de sucessão do Fab Four, mas ofuscado por Paul e Lennon: o beatle quieto tinha dificuldades de convencer os parceiros a gravar suas músicas. Quando a banda acabou, seu talento foi exposto ao público na carreira solo, tornando-se com o passar do tempo sólido e atrativo.

George tinha dentro de si um monstro musical que o dominava nas produções e apresentações. Pessoa quieta e pensativa, virou seguidor do hinduísmo, que influenciou diretamente suas músicas. Desse modo, Harrison tentou aos poucos desvincular a sua imagem do Beatles; o grande desafio era transmitir a pessoa que ele realmente era. Para isso, o artista limpou seu passado com All Things Must Pass. O álbum triplo, lançado em 1970,  trouxe canções da época de banda que não foram gravadas. Nesse trabalho, ele começou a mostrar seu interesse por Deus e a religiosidade.

(Foto: Reprodução)

Em 1973, produziu o álbum Living in The Material World, indiscutivelmente o disco que mais mostra quem Harrison era e ao que veio. A produção tem quase 44 minutos, com músicas que vão desde os singles mais pop até faixas mais complexas – um álbum que transforma quem ouve. George mostrou que compunha as músicas pensando em sua religião e em seu “eu” pessoal, como em “Be Here Now”.

Na primeira faixa do disco, o single “Give me Love (Give me Peace on Earth)”, esse conceito também é explicitado. A letra mostra o tema do álbum: o mundo imaterial, a busca de George em se conectar com Deus. A música foi composta e gravada no violão. Para uma música ser bem feita é necessário a conexão entre letra e instrumento. “Give me Love” começa com uma guitarra chorosa, abusando do solo lento e agudo, como se estivesse pedindo uma prece, assim se conectando com a letra que dizia:

Give me love, give me love

Give me peace on earth, give light

Give me life, keep me free from birth

(Foto: Reprodução)

George tinha o talento de falar de Deus sem que o discurso lembrasse preces religiosas. Assim, entregava apelos sentimentais profundos e conseguia mostrar para o público o que ele sentia em relação ao seu íntimo.

Na segunda faixa do disco, Harrison foge da temática e compõe “Sue Me, Sue You Blues’’, canção que mostra a mágoa com Paul McCartney, por conta do processo judicial em que o ex-parceiro havia entrado. George deixa claro na primeira estrofe da música o descontentamento com Paul.

And you serve me and I’ll serve you

Swing your partners, all get screwed

Bring your lawyer and I’ll bring mine

Get together and we could have a bad time

Ao tocar um blues arranjado e marcante, George alinha com maestria a lírica e o instrumento, juntamente ao violão incorporando a mensagem que a música quer passar. A bateria traz um ar sofisticado à composição, agressiva e ao mesmo tempo delicada, fazendo com que a música se torne dançante aos ouvidos.

Em “The Light That Has Lighted the World”, George realiza algo extraordinário. Em determinados momentos, o músico faz com que o instrumento cante por ele, usando de notas agudas, como se estivesse fazendo falsetes. O piano e a guitarra formam duas vozes e Harrison interpreta a letra como se estivesse chorando. A guitarra sendo tocada no estilo slide acompanha o piano, fazendo com que a dramatização da música seja completa.

I’ve heard how some people have said

That I’ve changed

That I’m not what I was

How it really is a shame

No que se diz respeito à letra, George mostra sua decepção com as pessoas que não conseguem superar o fim dos Beatles e o julgam por querer se dissociar da imagem da banda. O cantor trabalha no aspecto da liberdade para justificar a sua escolha em seguir carreira solo e fazer música com o seu estilo.

Passando pela equilibrada “Don’t Let Me Wait Too Long”, o britânico trabalha com o amor e Deus, muitas vezes confundindo os dois e não deixando claro de qual deles está falando, ou até quem sabe dos dois juntos. George usa o piano em “Who Can See It” para tratar desse sentimento e com a letra, percebe-se que Deus é a figura amada. Ele deixa isso implícito, mostrando que no mundo material se vê triste e sem correspondência no amor. Juntamente com uma voz chorosa e um instrumento que se assemelha com músicas de prece, a música soa como um pedido e um desabafo para aqueles que procuram uma resposta do amor religioso.

A canção homônima do álbum de longe não é a principal, porém mostra exatamente o que o artista quer expressar nesse trabalho. Harrison se abre e mostra o quão ele está infeliz com a efemeridade do mundo material. A composição instrumental da música traz o tom sarcástico da letra. Todo o arranjo é como uma odisseia cinematográfica, uma narrativa. Deixando suas influências hindus aparecerem, George coloca no refrão, fazendo uma reflexão espiritual, instrumentos típicos da Índia.

Na faixa seguinte, “The Lord Loves the One (That Loves the Lord)”, George usa um reverb na voz para soar como Deus falando e aconselhando seus filhos ao que se deve fazer para ter o Seu amor retribuído. E finalmente chegamos em “Be Here Now”. Quando um artista tenta marcar seu trabalho com suas referências, ele tenta o máximo expressar aquilo que sente e acredita. Na oitava composição, ele descarrega toda a influência do hinduísmo, regada a instrumentos indianos e uma pegada clássica, fazendo o ouvinte entender a mensagem que é passada na música e ainda se sinta confortado pela canção.

De fato um álbum profundo, que demora para ser entendido com clareza, que demanda esforço de quem o ouve. Este álbum ensina ao público quem é George Harrison: uma pessoa que buscava na religião um sentido da vida. O beatle tímido queria mostrar que sozinho ele poderia ser reconhecido sem que as pessoas tivessem que se lembrar dos seus companheiros de banda. Indiscutivelmente, Harrison está entre os maiores músicos de todos os tempos.

O artista influenciou gerações com seu estilo de tocar guitarra, sua maneira de englobar referências dentro do seu trabalho: a religião hindu, seu método inovador de tocar guitarra misturando R&B e rock e seu talento em escrever músicas. Ninguém conseguia chorar com a guitarra como ele. Living in the Material Word se mostra como o melhor começo para conhecer o beatle menos conhecido do público.

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