Jamily Rigonatto
Pele, ossos, órgãos, sangue e história. São esses cinco elementos que compõem a unidade de um corpo. Matéria física, esse conjunto ganha diversas traduções paradoxais no nosso dia a dia, sendo conhecido como ‘casa da alma’, ‘templo da mente’ e múltiplas variações que, nas entrelinhas, resumem um corpo como o espaço palpável que abriga o intocável mundo das ideias, como diria Platão. Mas, longe de definições rasas: “O que pode um corpo?”. Em cenas dinâmicas, Corpo Presente responde.
O filme, que estreou em Novembro de 2024 nos cinemas brasileiros, é uma produção dirigida por Leonardo Barcelos. Com a proposta de explorar a corporeidade em suas possibilidades, a obra mistura relatos reais à cenas diversas, criadas a partir da ficcionalidade ou execução de performances artísticas com uma pluralidade de etnias, gêneros e formatos do corpo humano.
A escolha visual explora a corporeidade em takes diversos com um tom experimental em que as cenas se assemelham aos efeitos comuns de obras vinculadas ao videoartivismo. Alguns momentos são quase psicodélicos, com um jogo de câmera que incentiva isso de maneira persistente. A Fotografia, assinada por Vagner Jabour, traz planos que se movem criando redes de espirais, com movimentos de travelling – em que a câmera e o corpo se movem em cena –, estáticos e tilt – com a câmera explorando uma expansão vertical dos planos.
Outro aspecto interessante se refere a montagem do longa-metragem – também atribuída a Barcellos –, que retoma cenários recorrentemente, com certa evolução dos acontecimentos, a exemplo da cena em que mulher encara um espelho e depois reaparece tocando forma e reflexo. Essa decisão causa a sensação de progressão; a ideia de que, com o avanço dos frames, essas personas sem nome vão ganhando mais intimidade e estreitando os laços com o conceito de corporeidade.
Quando se fala em narrativa, fica subentendido um discurso sobre gênero, considerando que grande parte das cenas são guiadas por uma protagonista e a maior parte da narração também se dá na voz dela. Considerado o corpo mais subjugado de uma sociedade – junto de pessoas transgênero – essa figura violentada, calada e sufocada é representada por metáforas com o corpo amarrado, soterrado, atingido e até mesmo ‘desmontando’ em torno de uma agressão milenar; herança de gerações longínquas. Outras minorias, como as pessoas negras, indígenas e LGBTQIA+ também aparecem nesse molde de certo sufocamento, em reflexo à maneira com a qual o mundo as encara.
Ainda, há uma proposta voltada a comparação do corpo com o elemento natureza. Terra, fogo, ar e água envolvem todo o enredo e vão criando pontes que contrapõem os detalhes, como as veias e o floema das árvores. Essa relação promove a ideia de sistema compartilhado, em que nenhum corpo está isento de histórias bilaterais, afinal, toda a matéria se interliga.
Seja ao explorar o corpo enquanto uma forma natural e, necessariamente, naturalista, expondo processos como o parto ou o sexo de maneira selvagem e, juntamente, poética, ou na escolha de expandir detalhes invisíveis a olho nu, como a formatação celular, Corpo Presente é disruptivo. Esse ponto cumpre um propósito comum às obras subversivas: colocar o telespectador para pensar.
A forma escolhida pode desagradar quem procura um roteiro linear ou, até mesmo, um enredo inclinado à contação de estórias. O propósito aqui é outro. Em linhas gerais, a produção filmográfica pode ser resumida como uma viagem simbólica em cinesia sobre o que nos permite ter conexão com o planeta Terra e suas perspectivas complexas, capazes de tão mais do que o que está à altura dos olhos.