Marina Ferreira
“Os mais velhos dizem que um dia, cansado da solidão do poder, Zambiapungo, o Ser Supremo dos cultos angolo-congoleses, foi tomado pela tristeza e cogitou desistir da criação do mundo.”
Essas são as primeiras frases da sexta faixa do lado A de Assim tocam os MEUS TAMBORES, o novo trabalho revolucionário de Marcelo D2, gravado durante o período de isolamento social com sua família. Os versos podem ser entendidos como a síntese da trajetória do disco, que é o mais ousado da carreira do rapper carioca.
Em entrevista recente para a revista Rolling Stones, Marcelo fala sobre a fúria que sentia no início da quarentena. Estava em estúdio com a sua banda, o Planet Hemp, cantando contra a onda crescente do conservadorismo da extrema direita e o fascismo, e sentia fisicamente o peso disso: de gritar liberdade e fazer arte em um país como o nosso. A fúria o deixou inquieto, inconformado. Em pânico. E foi através do tambor – Ng’Oma – e dos muitos beats do rap que D2 encontrou alívio e afirmou, assim como Zambi, que a criação não iria parar.
Para entender Assim tocam os MEUS TAMBORES é preciso partir da ideia dos discos de vinil, divididos em lado A e lado B, contando uma história por lado que juntas compõem um propósito maior. Já de início, Marcelo abre os caminhos desse trabalho através de uma chamada de rádio antigo, atentando para o momento histórico de pura crise em todos os setores da sociedade. Essa chamada também pode ser vista como o momento histórico do artista em seu processo de criar, compor, produzir e lançar um projeto audiovisual dentro de casa em meio ao caos da vida externa e da loucura que é viver, principalmente sendo brasileiro. Tudo isso, como se não bastasse, ao vivo para milhares de pessoas na Twitch.
Ao passar pelas faixas seguintes, o rapper retoma temas já conhecidos de sua obra, como o racismo, a violência policial, as diferenças sociais e sua fiel marijuana. Mas novos tons de voz acompanham a verdade dura que é cantada e rimada assim como novos ritmos e sonoridades, como o manguebeat e as referências ao Nação Zumbi em Malungoforte; o funk do Tropkillaz em Deus de Outro Lugar; a voz suave de Juçara Marçal e o tambor dos terreiros de candomblé em Rompeu o Couro; e a visita a uma clássica canção dos anos 70, na mais genial das misturas em A Verdade Não Rima.
Composta por Fátima Guedes em 1979 e imortalizada na voz da grandiosa Elis Regina, Onze Fitas – em sua versão original – é incorporada como sample e refrão no trabalho de D2. Enquanto ele rima sobre a brutalidade policial, a imparcialidade do estado e o descaso da mídia, ele prova que mesmo em uma de suas canções mais poéticas está mais político do que nunca.
É possível identificar as referências afro brasileiras muito bem destacadas por Marcelo em Malungoforte, na mistura dançante do maracatu com o beat pernambucano. Na já citada Tambor, O Senhor da Alegria, o conto africano transcrito pelo historiador brasileiro Luiz Antonio Simas e recitado pelo rapper paulistano Criolo encerra e amarra a primeira parte do trabalho tão bem construído.
“Sua benção, Ng’oma, nosso pai tambor! Nós estamos no mundo para celebrá-lo!”
Ao virar o disco, podemos sentir de imediato a mudança de tom e estilo. Enquanto havia o gosto experimental no lado A, na parte 2 do álbum Marcelo nos mostra suas raízes do rap em versos certeiros e referências que não passam despercebidas aos fanáticos pelo gênero. Mas ainda assim o artista nos oferece batidas experimentais, como a lembrança do reggae em As Sementes – canção colaborativa com Os Crias, espectadores que acompanharam assiduamente o processo do álbum pelas lives.
O beat nova-iorquino dos anos 90 em É manhã (Vem), com a participação de Luiza Machado – esposa de D2 e responsável pela produção executiva do disco – é acompanhado pela frase eternizada de Darcy Ribeiro na introdução – “[…] o mais importante é inventar o Brasil que nós queremos”. No início, nos guia à uma jornada muito pessoal do rapper em direção ao encerramento do trabalho, que ainda conta com uma declaração de amor à sua esposa, com samples da canção Prelúdio, de Raul Seixas: “sonho que se sonha só é só um sonho que sonha só, mas sonho que se sonha junto é realidade”.
Na faixa que encerra o xirê dos tambores de D2, ele viaja por sua história, repassa sua trajetória e traz seu filho Sain, o perfeito “cria”, que caminha junto ao pai na jornada do rap nacional em que Marcelo abriu caminho. Amigos são lembrados com carinho – como Yuka, Skank e Robson – e a vida ironizada na frase “dizem que cara feia é fome e disso nós não sofre mais”. A experiência do disco se torna ainda mais completa, viva e vibrante ao adicionar o filme à conta, dirigido por Ronaldo Land, transformando Assim tocam os MEUS TAMBORES em um álbum visual surpreendente, ou uma “obra transmídia”, como foi denominado por seu criador.
Muitíssimo bem costurado, produzido e finalizado, o álbum carrega uma história contada de maneira pessoal e condizente com o que conhecemos de Marcelo D2. E permitindo-se ser ousado em tempos de conservadorismo, Assim tocam os MEUS TAMBORES pode ser entendido como o álbum da carreira de D2, tão revolucionário, necessário e grandioso como seu dono.