#AnneFrank – Vidas Paralelas (Foto: Reprodução)
Raquel Dutra
75 anos nos separam de Anne Frank, do fim da Segunda Guerra Mundial e do fim do regime nazista na Europa. Historicamente, não estamos longe desta data, mas de forma geral, o Holocausto parece algo distante da maioria dos cidadãos do século XXI. Essa ilusão se dá com razão: é difícil assimilar a estimativa absurda de dezenas de milhões de pessoas que foram perseguidas, torturadas e assassinadas pelo nazismo entre os anos de 1930 e 1945. Também é difícil conceber que tamanha destruição foi arquitetada e executada por mentes e mãos humanas.
É o que historiadores e psicólogos relembram no documentário #AnneFrank – Vidas Paralelas: nós costumamos distanciar da espécie humana quem esteve por trás do genocídio, mas embora esvaziadas de qualquer noção possível de humanidade, aquelas pessoas ainda eram conscientes de seus próprios atos. Parafraseando Primo Levi, que compartilha suas memórias do Holocausto e discute o conceito de humanidade no livro É isto um homem?, em certa medida, eram mentes e mãos humanas assim como as suas, que agora acompanham meu raciocínio e rolam essa página. Ou como as minhas, que agora organizam ideias e escrevem esse texto.
Parece coisa de outra civilização, de outra era, de outro mundo, mas o período mais perverso da história recente da humanidade não está tão distante de nós quanto pode parecer. Ainda lidamos com suas consequências e o potencial destrutivo do ser humano ainda é uma ameaça que também se concretiza em ações. Por isso, a respeito deste assunto, nós ainda temos responsabilidades.
É sobre essas percepções e considerações que #AnneFrank – Vidas Paralelas se debruça para sutilmente desenvolver sua mensagem. Valendo-se de alguns trechos do livro O Diário de Anne Frank, o longa traz a participação de pessoas que, diferentemente de Anne e outros membros da família Frank, testemunham em vida o que sofreram durante o Holocausto. Sem tirar o protagonismo destes relatos, pequenas doses de informações técnicas sobre o período são incluídas, através da colaboração de especialistas, pesquisadores, dentre outras pessoas que dedicam suas vidas à preservação fiel dessas memórias.
Junto de sua família, Anne Frank viveu dois anos de sua vida (1942-1944) escondida no edifício em que seu pai trabalhava em Amsterdã (hoje, um museu, que inclusive tem parte do acervo disponibilizado virtualmente em português). Foi de lá que ela escreveu um diário, registrando seus sentimentos, percepções, momentos de otimismo e desesperanças enquanto se protegia da perseguição nazista.
No diário, Anne dizia que queria “viver mesmo depois de sua morte”, e assim o fez. Consciente do destino que poderia ter, ela organizou e reeditou seus registros, deixando-os preparados para o futuro que gostaria que eles tivessem. Pouco depois, ela foi descoberta no esconderijo e enviada à Auschwitz, onde morreu pouco antes da guerra terminar. O livro foi deixado, encontrado e publicado, eternizando a figura de Anne Frank mundialmente.
Seu diário abriga tanto potencial narrativo e documental que deu origem a muitas outras obras, como a cinebiografia The Diary of Anne Frank (1959). Agora, inspirou o documentário #AnneFrank – Vidas Paralelas, que é diferente de tudo o que já foi feito com base no livro.
O longa, lançado na Itália em novembro de 2019 e disponibilizado na Netflix em julho deste ano, interliga os relatos do livro com testemunhos inéditos. Deles, nós já imaginamos o que esperar: muita dor, crueldade e cicatrizes tão profundas que mesmo hoje, mais de 70 anos depois, ainda geram medos. Elas também falam sobre como encaram essas memórias e como se sentem no mundo hoje. Mas isso não é tudo.
#AnneFrank – Vidas Paralelas se encarrega principalmente de mostrar como a manutenção da memória coletiva do Holocausto é também responsabilidade dos jovens. É aqui que mora a essência do filme, construída pela direção suave de Anna Migotto e Sabina Fedeli, que também assinam o roteiro. A autonomia dos depoentes é preservada e o filme desenvolve um ritmo orgânico que permite o desenvolvimento de uma conexão do público com os relatos dos filhos e netos dos sobreviventes.
Conhecendo os sentimentos dos mais jovens em relação aos seus familiares que sentiram os horrores do nazismo na pele, entendemos que a dificuldade em compreender o que aconteceu não é apenas nossa. Assim, conseguimos também nos enxergar em algum lugar entre os netos ou bisnetos das testemunhas. Ali, a memória do Holocausto é “atualizada” e somos orientados sobre como devemos agir diante disso tudo nos dias de hoje.
O ponto principal da condução do filme fica por conta da narração de Helen Mirren. Nela, inexiste o intuito de interpretar Anne Frank como uma personagem, e por isso a participação da atriz funciona tão bem. Anne existe no documentário por si mesma – ela é a escritora da referência narrativa e a principal testemunha. Helen é a contadora de histórias, que fala diretamente do quarto onde Frank escreveu seus relatos enquanto é fotografada em planos fechados, sob uma luz e composições visuais aconchegantes. Quando a atriz tira os olhos do livro para contextualizar brevemente alguma situação conversando com o espectador, as imagens se abrem em planos médios que apresentam o quarto da jovem para os nossos olhos curiosos.
A máxima da combinação dos escritos de Anne com a narração de Helen é quando o primeiro beijo da jovem é mencionado. A escrita de Frank sobre esse dia é vivaz e eufórica, e a atriz resgata a graciosidade e a espontaneidade da juventude em sua leitura dramatizada. O resultado é uma cena enérgica que nos aproxima da Anne adolescente e trata com leveza momentos típicos da idade, como o despertar da sexualidade. É uma brecha que o documentário cria para humanizar ainda mais a figura histórica de Anne Frank e criar identificações entre ela e o público – especialmente os mais jovens.
O último elemento de condução do filme amarra o diálogo com as novas gerações. É uma personagem adolescente que carrega em seu nome uma sutil relação a Kitty, a amiga imaginária de Anne Frank a quem eram destinadas as cartas contidas no diário. Apresentada como @KaterinaKat (Martina Gatti, de SKAM Italia), a garota visita, em silêncio, memoriais e museus do Holocausto e registra suas inquietações em postagens nas suas redes sociais.
Nas cenas finais, Katerina chega ao seu último destino: o quarto de Anne Frank, onde Helen Mirren esteve o filme inteiro. A jovem abre a porta para entrar ao mesmo tempo em que Mirren abre para sair, ao terminar sua última fala. É um momento lindo e significativo que ressoa um “agora é com você” para as novas gerações, representadas na imagem de Katerina. É concluída com sucesso transmissão da mensagem do filme: nós – a juventude do século XXI – entendemos qual é a nossa responsabilidade para com a integridade da memória do Holocausto.
#AnneFrank – Vidas Paralelas não é um documentário sobre o Holocausto nem sobre a Segunda Guerra Mundial. Não é sobre o nazismo, nem mesmo sobre Anne Frank. É sobre memória, sobre responsabilidade e sobre futuro. É sobre a importância de resistir ao revisionismo histórico e ao esvaziamento dos significados do Holocausto.
É também sobre a importância de estarmos alertas, pois respiros de neonazismo teimam em surgir pelo mundo – e pelo Brasil – afora. Eles se sustentam nas bases do nazismo, como racismo, xenofobia, eugenismo e outras formas de preconceito e discriminação. Por si só, já ameaçam a vida e a liberdade de milhões de pessoas; quando combinadas dentro de uma mente motivada pelo ódio que faz horrores parecerem legítimos, resultam em destruições massivas. E estas sim, são práticas inegavelmente, conscientemente e visivelmente próximos de nós, em todos os sentidos.