Jamily Rigonatto
Desde seu surgimento, a humanidade tenta se fazer eterna de alguma maneira. De registros em paredes de cavernas a imagens perfeitamente impressas em papel filme, o objetivo é tentar manter um dos bens imateriais mais importantes vivo: a memória. No longa-metragem A Procura de Martina, exibido na seção Mostra Brasil da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, isso é amplificado com uma viagem particular pela lembrança que se universaliza para milhares de outras pessoas.
Protagonizado por Martina (Mercedes Morán), o filme conta a história da viúva que carrega uma cicatriz traumática: a perda de uma filha durante a Ditadura Argentina. A jovem militante foi assassinada, mas antes, teve um filho dentro de um cativeiro. O bebê foi levado pelos militares e criado em uma das famílias, perdendo qualquer chance de laço afetivo com a família biológica.
Com esse fio solto desatando as pontas de sua história, a personagem viveu uma vida de flashbacks acompanhados pelo desejo de encontrar o neto. No entanto, a narrativa caminha como a vida, em linhas tortas, e a mulher só recebe notícias do possível paradeiro do familiar quando trava uma luta interna com sua própria identidade ao receber um diagnóstico de Alzheimer. Apostando na última chance, Martina parte para o Brasil para tentar materializar o encontro.
Colaboração entre Brasil e Uruguai, a obra assinada por Márcia Faria é sensível ao nível máximo, com diversos momentos contemplativos em que a escolha são imagens que expressam mais elementos que as próprias falas emitidas pelo elenco. Ao encarar o Rio de Janeiro com seus próprios olhos, Martina exala esperança ao mesmo tempo em que o temor se faz palpável.
A falta de diálogos deixa uma sensação mista. Em partes, o telespectador sente um certo buraco, com a falta de contexto sobre o momento temporal, história e retratos escolhidos pela narrativa. De outro ponto de vista, isso cria uma sensação de reconhecimento quanto aos relatos, afinal, o cenário de viver uma ditadura com repressão, assassinatos e movimentação social, infelizmente, não é exclusividade de um país da América Latina.
No meio disso, o Alzheimer se insere de forma pontual no roteiro de Gabriela Amaral Almeida e Márcia Faria. A doença degenerativa é tratada com delicadeza e um visível estudo acerca dos comportamentos que rodeiam pessoas afetadas por ela. Em um enredo tão focado no resgate como é A Procura de Martina, fica impossível não ser tomado pela angústia que envolve a fragilidade da lembrança; o quanto, por mais tentativas que tenham, é impossível assegurar a integridade do testemunho.
Essa situação quase irônica acompanha a totalidade da produção que, muitas vezes, se calça em contrapontos. Extremos que se complementam tomam posse da sequência de acontecimentos, à exemplo de: juventude e velhice; presente e passado; esperança e desilusão… Efeitos tão inerentes à existência que, quando colocados em tela, expõem uma estranheza rotineira. Assim, frequentemente, a obra causa a sensação de algo já visto antes; parece não haver tanta novidade.
Não é como se isso pudesse ser lido como uma crítica. Pelo menos não uma direcionada ao produto cinematográfico. A realidade é única: catástrofes, vidas perdidas, rivalidade sem humanidade e tudo mais que define uma ditadura se normalizaram no que é chamado sociedade contemporânea. Tal denúncia acaba presente nas entrelinhas desta e de outras produções que trazem o tema à tona.
Cabe desmembrar elogios a dois aspectos da obra: atuação e cinematografia. Com Morán em primeiro plano, uma extensão de emoções, fisionomia e gestos estampam a tela de uma maneira extremamente singular. A atriz emociona no silêncio e faz qualquer frame valer a pena. As companheiras de cenas, Adriana Aizemberg e Carla Ribas, também exalam momentos marcantes, seja com a comicidade de uma ou com a dramaticidade da outra.
Já na Fotografia, coordenada por Léo Bittencourt, as cenas são leves e trazem um jogo de luz muito interessante para representar aspectos mais emocionais da produção. Os planos focados nas feições valorizam o ponto subjetivo e o caráter humano do longa, estabelecendo uma conexão entre personagens e público. Além disso, algo na captação torna o registro atemporal, como se pudesse ser descrito como passado, presente e futuro.
Ao final, sobram questionamentos sobre como um filme tão familiar rememora uma ferida de décadas. Cabe questionar a nós mesmos enquanto pessoas em que momento uma dor tão imensurável se tornou parte do simples cotidiano, capaz de se camuflar no dia a dia. Em meio a fragmentos de uma vida que representa muitas, A Procura de Martina não é uma jornada solo.