Em A Hora da Estrela, Macabéa representa a busca da própria identidade

Foto da atriz Marcélia Cartaxo, uma mulher branca de cabelos cacheados e castanhos. Ela está correndo e usa um vestido branco. A foto está em preto e branco.
Marcélia Cartaxo dá vida à Macabéa, protagonista do livro e da adaptação cinematográfica de A Hora da Estrela (Foto: Sessão Vitrine Petrobras)

Guilherme Machado Leal

A Hora da Estrela, filme de 1985 baseado no livro homônimo escrito por Clarice Lispector, conta a história da datilógrafa Macabéa, que pouco da vida conhece, mas vive com o mínimo porque foi ensinada dessa maneira. Dirigido por Suzana Amaral, o longa-metragem ganhou uma nova versão remasterizada com o apoio da Sessão Vitrine Petrobras como distribuidora e foi lançado nos cinemas em 2024, sendo a chance do público brasileiro conhecer ou revisitar uma das histórias nacionais mais emocionantes já feitas. 

A trama da narrativa escrita pela ucraniana é simples: a protagonista alagoana vai para o Rio de Janeiro trabalhar como datilógrafa, algo comum no século XX, visto que o trabalho daria chances de melhores condições de vida para a migrante. Após o falecimento da tia, Macabéa vai morar em uma espécie de pensão com outras três mulheres. Com 19 anos, um estômago ruim e uma alimentação que nada a favorece, a jovem apenas existe sem entender a tamanha dificuldade que a permeia. Nos cinemas, a personagem é vivida brilhantemente pela atriz Marcélia Cartaxo.

Esguia, desnutrida e curiosa são três das palavras que definem a protagonista e, infelizmente, a forma como a veem. Mesmo não tendo terminado a escola, Macabéa arruma um emprego como datilógrafa, que dá a ela algo menor do que um salário mínimo. No entanto, embora esteja cercada por inúmeros obstáculos, há algo que desperta chamas em seu coração, a Rádio Relógio. Ao ouvir os ensinamentos da programação radiofônica, a alagoana aprende os significados daquilo que tanto a aflige: as palavras.

Foto da atriz Marcélia Cartaxo, uma mulher branca de cabelos cacheados e castanhos. Ela veste uma blusa bordada com as cores cinza e branco e utiliza uma presilha branca no lado esquerdo do cabelo. Ela está cabisbaixa e olha com tristeza para baixo.
A primeira edição de A Hora da Estrela foi publicada em 1977, mesmo ano da morte de Clarice Lispector (Foto: Sessão Vitrine Petrobras)

Um dos pontos cruciais para o entendimento da história é a identificação do público com sua protagonista. Dessa forma, o trabalho de Cartaxo é fundamental para que o espectador entenda a nordestina e, assim, tenha empatia por ela. Macabéa não é exclusiva, nem apenas uma persona evocada por Clarice Lispector. A alagoana é como todo e qualquer ser humano que já se sentiu minimamente descartável e perdido no mundo. A vida, para ela, é normal. Entretanto, para aqueles que a acompanham nas telas do Cinema, a jovem possui um passado trágico, um presente cinza e um futuro assustador. 

Em certo ponto da trama, a protagonista conhece o operário Olimpo de Jesus (José Dumont), por quem ela prontamente se apaixona. Com anseio de viver e sentir algo diferente de sua vida monótona, a garota sente as primeiras faíscas do amor (não correspondido). No diálogo de Macabéa com o pretendente, há o desenvolvimento dela enquanto ser pensante: à medida em que entende-se a ganância do metalúrgico, compreende-se a inocência da personagem, uma vez que, por não ter acesso a direitos básicos – como educação, saúde e alimentação – pouco do mundo ela conhece.

Virgem, fã de coca-cola e datilógrafa, Macabéa não tem tempo de se sentir triste. No sistema capitalista, pensar em sentimentos é um luxo que ela não se pode deixar levar, ainda mais aqueles que a mostrariam a situação deplorável em que a alagoana vive. Além de suas colegas de pensão, a jovem possui uma amiga no trabalho, a carioca Glória, vivida por Tamara Taxman, que é tudo o que ela não é: provocativa, desejada por homens e namoradeira. Viciada em superstições, a coadjuvante rouba o namorado da protagonista a fim de ter o homem que realmente ama. Após a atitude, a loira sugere que a personagem principal faça o mesmo para que sua vida mude.

Foto da atriz Fernanda Montenegro, uma mulher branca de cabelos cacheados, e a atriz Marcélia Cartaxo, uma mulher branca de cabelos cacheados e castanhos. Elas estão sentadas olhando para as cartas que estão na mesa.
Com um trabalho de tirar o fôlego, Fernanda Montenegro é a coadjuvante perfeita para A Hora da Estrela (Foto: Sessão Vitrine Petrobras)

A partir da ida da datilógrafa à cartomante Madame Carlota, interpretada pela brilhante Fernanda Montenegro, Macabéa entende a sua própria vida e existência. Nunca foi amada e muito menos desejada, mas aprendeu a viver assim, pois pensava que esse era o normal: não ser. Em uma interpretação caricata na dose certa, Montenegro traz mais uma carta de humor utilizada pelos escritos de Lispector e pelo roteiro adaptado de Alfredo Oroz e Suzana Amaral. Através da consulta, a alagoana confessa que tem medo de palavras, mas escuta atentamente todas as previsões feitas pela ex-prostituta. Assim, a percepção da protagonista de sua humanidade representa o ponto mais alto da narrativa

Por esse lado, o filme apresenta um dos diálogos mais importantes da história: a análise da vida trágica de Macabéa. A cena reúne tudo o que o público viu ao longo da trama e, com as atuações de Cartaxo e Montenegro, há um anseio por um futuro menos amargo para a protagonista. Após o término da sessão com a profissional, Macabéa se despreende do presente e do passado terrível e olha em direção ao futuro. Vívida por sensações novas e experiências que possam tirá-la do estado automático em que permaneceu por 19 anos, a recém descoberta de sua autonomia serve como a ‘cereja do bolo’ do desenvolvimento perfeito da personagem enquanto arco narrativo. Ancorada na maestria dos escritos de Clarice Lispector, o longa-metragem dá um ‘gostinho de quero mais’, levando o espectador a consumir a obra original para entender ainda mais a datilógrafa.

Baseando-se em um clássico nacional, A Hora da Estrela é competente ao adaptar uma das histórias mais cruas e delicadas escritas pela ucraniana. Ao mesmo tempo em que Macabéa tem a Rádio Relógio como sua melhor amiga, sempre aprendendo um termo novo e informações que não conhecia, a datilógrafa possui medo dessas próprias palavras. Traçando um paralelo com o amargor e doçura que é viver, o longa-metragem escancara os dilemas da vida humana: com medo de não ter sido ninguém, a protagonista foi e muito, assim como Clarice Lispector significou tanto para a Literatura brasileira.  

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