Bárbara Alcântara
Courtney Love é e sempre foi uma filha da puta ambiciosa. De certa forma, atingiu o que queria: em 1992, casou-se com Kurt Cobain, um dos grandes ícones da história do rock. Dois anos depois, no dia 12 de abril de 1994, preparava-se para lançar o que é até hoje a sua obra prima, Live Through This, segundo álbum de estúdio da banda Hole, em que era vocalista.
Mesmo com uma filha pequena, passou meses dentro de um estúdio, cobrando a si própria e seus colegas de banda completa perfeição em cada uma das 12 faixas – ela sabia que essa seria a chance de mostrar o seu talento, de não ser a sombra de seu marido. No mundo da música sempre foi assim: ser mulher é ter que se provar o tempo todo, mesmo quando o que você faz é genial.
O que ninguém esperava era que, uma semana antes do lançamento, no dia 8 de abril, o cadáver de Kurt seria encontrado em casa, na cidade de Seattle, nos EUA. Um tiro na cabeça. Suicídio. Em um estalar de dedos a notícia se espalhou pelo mundo e ganhou as manchetes. Todos chocados com a morte de um rapaz de apenas 27 anos, no auge da fama e com uma filha para criar.
Resultado: a Courtney Love rockstar desapareceu, e o que restou foi apenas uma viúva em luto, completamente despedaçada. Ao mesmo tempo em que sofria, ela tentava se manter erguida, cumprindo os shows programados para a turnê de lançamento e cuidando da pequena Frances Bean Cobain.
A partir daí, comentários sobre o Live Through This se tornaram indissociáveis da tragédia. Ninguém se atentou à mensagem; apenas liam as entrelinhas, aproveitando cada abertura para inventar teorias da conspiração. Fãs, críticos, curiosos: todos tinham a sua versão. Em algumas, Courtney era apontada como assassina – afinal de contas, um álbum intitulado Live Through This (sobreviver a isso, em tradução livre) só poderia ser um aviso e, não, uma infeliz sincronia do destino. Na maioria, ela era o perfeito arquétipo da femme fatale, a mulher ardilosa que seduz o rapaz brilhante e indefeso apenas para levá-lo à perdição. O que todas as histórias tinham em comum é que Courtney Love sempre era a vilã.
Completando a aura mórbida em torno do álbum, no dia 16 de junho, dois meses após Live Through This ser apresentado ao público, a então baixista Kristen Pfaff foi encontrada morta em seu apartamento por um colega. Causa da morte: overdose. Na época, a heroína era combustível para as horas exaustivas de gravação e todos da banda usavam, com exceção da vocalista.
O problema é que o acontecimento serviu para reforçar boatos em torno de Love e sua dependência química, principalmente no que se referia ao uso durante a gravidez – boatos esses que foram forças-motrizes para a composição do álbum. E tudo foi ficando pesado. Cada vez mais pesado que o céu.
Entre e pegue tudo o que quiser
Como banda, a trajetória é a seguinte: em 1991 nascia o seminal Pretty on the Inside, produzido por nomes de peso do rock alternativo, Kim Gordon (Sonic Youth) e Don Fleming (produtor musical). São 11 faixas angustiantes embaladas pela voz rouca de Courtney Love, uma então jovem adulta que ansiava pela fama e estava disposta a tudo para alcançá-la.
Muito próximas do punk/hardcore, cada música disseca, em meio a microfonias e doses não tão homeopáticas assim de sarcasmo, as hipocrisias da sociedade; o detalhe é que nem seus amigos ou a própria Love, que se apresenta na faixa de abertura como a “Teenage Whore” (vadia adolescente), passam incólumes. O que ninguém sabe dizer é exatamente o que faz de Hole extraordinariamente incômoda: as letras são reais ou foram escritas para chocar e vender?
Já no sucessor, Celebrity Skin (1998), somos guiados por uma Los Angeles de duas faces: ao mesmo tempo em que a cidade simboliza ter chegado aonde Courtney tanto desejava – capas de revistas famosas, dinheiro e status social -, ela relembra todo o sofrimento do caminho. Não só porque a reputação que atingiu não é das melhores (a mídia insiste em colocar a vocalista em estereótipos como “vadia, viúva ou assassina”), mas por tudo o que Love perdeu – pessoas e até mesmo a sua identidade – para chegar até lá.
Bem nesse meio está Live Through This. O momento do tapa na cara. Quando a garota não-tão-angelical-assim-mas-ainda-ligeiramente-ingênua atinge o que tanto sonhava. Mas a que custo? No fim de 1992 fora difamada em uma entrevista para a revista Vanity Fair. A jornalista afirma durante a reportagem que a artista fazia uso regular de heroína, mesmo depois de descobrir que estava grávida. A notícia reverberou, e em pouco tempo todos os veículos desenvolveram um fetiche doentio pela sua maternidade.
Se o puerpério já é um período naturalmente doloroso, tanto física quanto emocionalmente (muitas mulheres desenvolvem a depressão pós-parto), e a opinião de pessoas próximas é incômoda o bastante, imagine ter que lidar com dedos apontados por desconhecidos de toda a sua cidade. De todo o seu estado. De todo o seu país. As críticas foram tão pesadas que, em certo ponto, Courtney chegou a perder a guarda de Frances.
E não parava por aí: também davam a entender que Love, a “oportunista carismática”, era a responsável por ter carregado Cobain para o mundo da dependência química. Era ela a auto-destrutiva, a depravada, a drogada. Ele era o pai, o filho e o espírito santo; aquele que todos reverenciavam e ninguém ousava criticar.
É exatamente isso que Courtney Love (guitarra e vocal), Eric Erlandson (guitarra), Kristen Pfaff (baixo) e Patty Schemel (bateria) nos entregam nas 12 faixas que compõem o álbum: uma narrativa cravada em gritos catárticos de ódio e, claro, de frustração, sobre o momento em que a vadia adolescente trajando um baby doll é convertida na “Miss World”, como a foto da capa. Um mix doentio de glamour e decadência, de alegria e cansaço. O espelho fiel de alguém que conseguiu ocupar o palco e mergulhou de olhos fechados na multidão, mas não foi capturada por sequer um braço.
A abertura, “Violet”, já nos introduz ao que será o resto: uma estrutura simples e pegajosa – quase uma música pop com distorção na guitarra, bateria suja e estridente e gritos roucos da vocalista. Parece ter dois refrões, e um deles corta os ouvidos, ao mesmo tempo em que é um convite de entrada: “Go on, take everything//Take everything//I want you to” (Vá em frente// Pegue tudo// Pegue tudo// Eu quero que você pegue).
O Hole em essência era uma mistura dos vocais crus de Love e a guitarra pesada e levemente melodiosa de Erlandson. Pfaff e Schemel, contratadas com o processo de criação em curso, se encaixaram nessa combinação perfeitamente. Acrescentaram, com maestria, a técnica. Ambas haviam estudado música, e eram capazes de atingir a perfeição que a vocalista tanto desejava – em uma tentativa de superar o tão aclamado Nevermind (1991).
Se em Pretty on the Inside rola uma dúvida em relação à genuinidade das letras, em Live Through This ela é dissipada. As composições vão desde questões subjetivas – em “Jennifer’s Body” e “Doll Parts” o tema principal é o sentir-se fragmentada, a ausência de identidade -, até episódios reais, como o trecho “I want my baby// Where is the baby?// I want my baby// Who took my baby?” (Eu quero o meu bebê// Onde está o meu bebê?// Eu quero o meu bebê// Quem pegou o meu bebê?) já no final do álbum, em “I Think That I Would Die”.
Em “Miss World” ela canta sobre ser a garota que não consegue encarar ninguém nos olhos e que merece morrer, mas assume a responsabilidade: “I’ve made my bed// I’ll lie in it// I’ve made my bed// I’ll die in it” (Eu preparei a minha cama// Eu vou deitar nela// Eu preparei a minha cama// Eu vou morrer nela). Ela nos entrega essa espécie de condescendência só para em duas faixas depois negar tudo. “Was she asking for it?// Was she asking nice?// If she was asking for it// Did she ask you twice?” (Ela estava pedindo?// Ela pediu com educação?// Se ela estava pedindo// Ela pediu duas vezes?), ela pergunta em “Asking For It”, assumindo um tom irônico.
A última faixa, “Olympia” – que vem no encarte com o nome “Rock Star” por ter sido trocada de última hora -, é o fechamento perfeito para um álbum carregado de ódio e sarcasmo. É uma carta endereçada a todos os punks e, principalmente, às jovens do então embrionário movimento riot grrrl de Olympia (a treta era real: no backstage do Lollapalooza de 1995, Courtney Love teria dado um soco na cara de Kathleen Hanna, vocalista da banda Bikini Kill).
De acordo com Courtney, eles usavam essa máscara de revolucionários mas no fim das contas apenas repetiam as frases de impacto como robôs, e mantinham a pose porque era o esperado de todos que estavam lá.
Na versão original da música (que não é a do álbum), ela brinca: “When I went to school in Olympia// Everyone’s the same// We took punk rock// And we got grades” (Quando eu frequentava a faculdade em Olympia// Todos éramos iguais// Punk rock era uma disciplina// E recebíamos notas por isso). Na versão lançada, ela não deixa o senso de humor de lado: “We look the same// We talk the same yeah// We even fuck the same” (Nos vestíamos da mesma maneira// Falávamos igual// Até mesmo fodíamos do mesmo jeito).
Algum dia você irá sofrer como eu sofri
Apesar das críticas ácidas, Courtney nunca foi flor que se cheire. Descobrir as merdas espalhadas pelo seu caminho não é uma tarefa difícil. Basta jogar no Google as palavras “Courtney Love” + “polêmica”. É tanta coisa que dá até pra classificar: agressões, declarações escrotas para a mídia, dependência química, perda da guarda da filha (aconteceu mais de uma vez), processos judiciais contra outros, processos judiciais contra ela, vexame nas redes sociais… E por aí vai.
O desafio é discernir a mentira da verdade. E sinceramente? Mesmo que metade das histórias sejam inventadas, o que resta continua sendo o suficiente para destruir a reputação de alguém por muito tempo. Mas talvez não a reputação de qualquer um.
Um artigo de 2017 da jornalista Claire Dederer para a revista The Paris Review, chamado “What do we do to the art of monstrous men?” usa a carreira de diretores famosos (indo no embalo da campanha #MeToo) com histórico de agressão ou assédio para debater: deveríamos demonizá-los ou não? Segundo a autora do texto, a gente precisa aprender a dissociar o artista da obra, a enxergar o legado deixado por ele e não levar em consideração suas atitudes no âmbito pessoal. Se não conseguirmos, ok, mas deveríamos ao menos tentar.
A verdade é que sempre fizemos isso. E ainda fazemos. Quem é que não sofre a cada declaração do Morrissey para a mídia, mas não consegue conter a satisfação ao ouvir “Bigmouth Strikes Again”, do Smiths? E a quantidade de rockstars que têm posturas tão nojentas quanto as de Courtney Love, mas que idolatramos? Sid Vicious, Axl Rose, Nikki Sixx, Henry Rollins. A lista continua. Só que quando nos deparamos com mulheres que cometem erros – ou que se enquadram em estereótipos considerados genuinamente masculinos -, não conseguimos perdoar da mesma maneira.
Exemplo prático: enquanto Woody Allen e Roman Polanski, com sérias alegações de pedofilia e assédio sexual, continuaram conceituados no universo cinematográfico, a atriz Winona Ryder – “Beetlejuice – Os Fantasmas se Divertem” (1988) e “Edward Mãos de Tesoura” (1991) -, viu toda a sua carreira ir por água abaixo depois de ser flagrada em episódios de cleptomania e na posse de medicamentos sem receita. Foi de musa dos anos 90 à mera atriz coadjuvante, e só foi conseguir um papel a sua altura recentemente, na série da Netflix “Stranger Things” (2016).
Com Courtney Love a história não é muito diferente. No início porque o macho roqueiro dos anos 90 não conseguia engolir a mulher em posição de liderança que incorporava o espírito do rockstar tradicional sem escrúpulos, ao mesmo tempo em que era incrivelmente talentosa e cativante; ela gritava e xingava trajando um vestidinho infantil. Era a mistura da devassidão com a inocência, e a contraditoriedade presente nisso era incômoda.
Com a morte de Kurt, a situação se agravou: ela vivia o luto do jeito errado, fazendo turnês e shows e se expondo e saindo com outras pessoas. Para completar, ela era mãe, em uma maternidade alucinada – em “Plump”, segunda faixa do Live Through This, ela diz “I don’t do the dishes// I throw them in the crib” (Eu não lavo a louça// Eu jogo tudo no berço). Ela não merecia respeito algum, e com o seu trabalho não seria diferente.
E se…?
Em 2014, os membros vivos do Hole (Courtney, Eric, Patty) junto com dois dos produtores que estavam presentes no período de gravação do álbum, deram uma entrevista para a Spin Magazine, esclarecendo dúvidas e narrando o processo de composição do Live Through This – que então completava 20 anos. Na abertura da matéria, a jornalista Jessica Hopper traz algumas questões interessantes à tona:
“E se nós tivéssemos nos confrontado com a imagem da Courtney Love rockstar naquela semana e, não, com a Courtney Love que nós vimos em luto, doando camisetas antigas de seu marido para adolescentes melancólicos? Como nós teríamos compreendido um álbum tão icônico se ele não tivesse sido permeado pelo suicídio do Kurt Cobain? E o que teria sido de Hole se a baixista Kristen Pfaff tivesse vivido?”
Mesmo em um contexto nada promissor, eles conseguiram um disco de ouro em dezembro de 1994 pela venda de 500 mil cópias e seis meses depois o de platina, por baterem a marca dos mais de 1 milhão de discos vendidos. Os shows estavam sempre lotados e, mesmo quem não gostasse da banda, tinha curiosidade para ver de perto a performance da vadia, viúva má e pior mãe do universo. Partindo desse ponto, é muito interessante imaginar o que poderia ter se tornado o Hole em condições normais de temperatura e pressão.
Mas os “e ses” não precisam parar por aí. Na verdade, a pergunta mais importante deveria ser: e se nós fizéssemos com a arte de mulheres monstruosas o mesmo que fazemos com a dos homens?