Matheus Fernandes
Desde o primórdio dos jogos eletrônicos, uma mecânica que une a maioria dos games é a matança indiscriminada. Durante uma curta sessão, hordas e hordas de inimigos sem nome ou história desaparecem na mão dos jogadores, sejam eles os Goombas de “Super Mario World”, os aliens de “Space Invaders” ou os minions de “League of Legends”.
Mesmo em jogos que prezam pela irreversibilidade das mortes, como a série Fallout, um rápido “load game” livra o player de todas suas responsabilidades. Então, o que acontece quando um jogo tenta subverter essa ordem?
“Undertale” segue a história de uma criança, sem gênero definido, que atravessa um portal em uma montanha vai parar em um mundo de monstros. Nesse universo, os monstros haviam sido previamente separados do mundo dos humanos em uma sangrenta batalha, e agora buscam retomar seu espaço. Mas, para isso, precisam de uma alma humana, representada pela criança, que também busca seu caminho de volta.
Com a proposta de ser um “RPG onde você não precisa matar ninguém”, Undertale adiciona uma nova dimensão aos inimigos: apesar de monstros que inicialmente agridem o jogador, todos eles tem nomes, personalidades e propósitos . Um fantasma pode ser alguém solitário em busca de compreensão, outra criatura surrealista busca alguém que ria de suas piadas e cachorros monstruosos amalgamados buscam um pouco de carinho.
Mesmo os tradicionais chefes podem ser ajudados, tornando-se amigos do protagonista, em um processo que revela alguns dos melhores personagens e momentos da história recente dos games, como um “Date Sim” com um esqueleto piadista, aulas de culinária com uma guerreira e discussões sobre anime com uma coelha cientista.
Mas, seguindo a regra divina do livre-arbítrio, você ainda tem a liberdade de executar os inimigos. O caminho mais rápido e simples para terminar o jogo ainda é esse, mas não o mais gratificante. E o mundo ao redor reage a suas atitudes, seguindo as leis do karma. Você pode ser seu salvador, ou seu destruidor. O jogo pode ser um RPG inovativo que subverte suas expectativas, ou apenas mais alguma horas de atravessar criaturas com espadas.
Conceitos como EXP e LVL, tradicionalmente experiência e nível nos jogos do gênero, transformam-se em Pontos de Execução e Nível de Violência. Ao acumular mortes, seu nível de violência aumenta, distanciando-o emocionalmente do ato do homicídio e facilitando a agressão continuada.
Ao tentar consertar o que já foi feito, as consequências questionam a própria essência dos jogos eletrônicos. Em um mundo com infinitos save games e linhas do tempo, todas as possibilidades são esgotadas, como em um conto do argentino Jorge Luis Borges ou o Eterno Retorno de Nietzche. Esse niilismo se personifica no esqueleto Sans. Aparentemente preguiçoso e introvertido, o personagem quebra a quarta parede e toma consciência da insignificância de tudo, diante do conhecimento de que tudo será apagado e revivido seguidamente, pelas próprias regras dos jogos eletrônicos.
Tendo como inspiração principal Earthbound, Mother 2 no Japão, jogo de RPG do SNES conhecido pela capacidade narrativa, com suas paródias e quebra de quarta parede, Undertale é resultado do trabalho majoritário de uma pessoa só, Toby Fox, do character design à programação à cativante trilha sonora (Fox havia composto a trilha da webcomic Homestuck), fortalecendo uma geração de designers independentes dedicados a narrativas pessoais, em games como Braid e Fez.
Ao subverter a mecânica mais básica dos jogos, convidando o jogador a refletir sobre a própria natureza do meio, Undertale mostra uma alternativa mais baseada em narrativa, escolhas e personagens elaborados, menos na destruição sem sentido. Ainda que as lógicas sejam diferentes entre o real e o virtual, na próxima vez que se encontrar em um conflito, lembre-se que o outro lado também tem sua história e problemas.