Uma década depois de seu lançamento, a viagem continua.
Luis Felipe Silva
Depois de viajar cerca de 1.300 km, chegava ao Brasil, há dez anos, uma Kombi amarela caindo aos pedaços. Dentro dela, uma família pouco convencional que, mesmo somadas as diferenças, se uniu em torno do sonho de ganhar um concurso de beleza da pequena Olive interpretada por Abigail Breslin.
Pequena Miss Sunshine (Little Miss Sunshine) foi lançado no Brasil em 20 de outubro de 2006 e arrancou lágrimas e sorrisos do público. Num tom de comédia-dramática a trama gira em torno de um concurso de beleza para pré-adolescentes em que Olive se inscreve. A família, que mora em Albuquerque, se vê obrigada a viajar até o estado da Califórnia onde aconteceria o concurso.
Os menos atentos suporiam que é mais um feijão com arroz requentado à la Sessão da Tarde e que pouco tem de novidade. Mas já nas primeiras cenas, a apresentação icônica e individual dos principais personagens dá certo sabor de curiosidade. Como no filme: Olive, a Pequena que dá nome ao filme e sonha em ganhar um concurso de Miss; seu pai, Richard (Greg Kinnear) que tenta emplacar seu programa de autopromoção “Recusa-se a vencer”; Dwayne (Paul Dano) um adolescente problemático no auge dos seus 15 anos que faz um voto de silêncio; Edwin (Alan Arkin), pai de Richard, viciado em heroína; Sheryl (Toni Collette) mãe de Olive que tenta administrar toda a família ao mesmo tempo e o tio Frank (Steve Carell), um suicida recém-frustrado.
As chances de à época, com esses personagens, Pequena Miss Sunshine, ser nivelado mediocremente e imergir na grande lagoa azulada das sessões vespertinas da TV aberta, no Brasil, eram altas. Mas, não por acaso, o filme ganhou o Oscar de melhor roteiro original no ano seguinte. Assinado por Michael Arndt, o roteiro foi comprado pela soma de US$ 250 mil. E algumas peculiaridades talvez o tenham lhe rendido tantos elogios.
Na trama, algumas questões são tratadas de forma leve. A homossexualidade é tomada pelos olhos de uma criança e de adultos ao mesmo tempo. O valor da vida é confrontado pelo ego ferido de um típico personagem da sociedade moderna. Somam-se as reflexões das privações em favor dos bônus, dos sonhos e de como lidar e se comportar diante de completos desastres pessoais.
Detalhista, Miss Sunshine tem referências sutis e nos leva a conexões pouco óbvias. Nietzsche, por exemplo, aparece sob a forma de, quem sabe, seu livro mais famoso: Assim falou Zaratustra. E é personificado, na hora mais silenciosa, quando as palavras se retiram da boca de Dwayne. Os conselhos de Edwin ao seu neto podem ser desacreditados por seu vício, mas a fundo, tem muito mais de sentido e culto ao carpe diem de Sociedade dos Poetas Mortos (1989) do que meros devaneios de um velho rebelde.
Olive, por sua vez parecer ter sido emprestada de Alô, Sr. Deus aqui é Anna, (livro de Fynn, 1974). Sua ternura e leveza dispensam ensaios e confirmam a apresentação feita nas primeiras páginas do livro e, consequentemente, nas primeiras cenas do filme: “É fácil saber a diferença entre uma pessoa e um anjo. A maior parte de um anjo está no lado de dentro e a maior parte de uma pessoa está no lado de fora”. O toque de Abigail à personagem lhe renderia não só elogios como a indicação a melhor atriz coadjuvante ao Oscar de 2007.
A produção é simples, mas foi demorada. Dos primeiros rascunhos de Arndt à última tomada: cinco anos. Ao custo de US$ 8 mi (valor modesto) o longa rendeu pouco mais de US$ 100 mi em bilheteria. Foram usadas quatro Kombi VW T2 Microbus modificadas. E não por acaso: a altura e profundidade do veículo permitem uma filmagem ampla de todos os personagens.
A continuidade é certeira e tem pouquíssimos deslizes. A fotografia, sob os cuidados de Tim Suhrstedt, surpreende. As filmagens, que ocorreram no Arizona e no sul Californiano, talvez tenham ajudado por estarem intimamente ligadas ao roteiro (que originalmente previa uma viagem da costa leste de Maryland para a Florida).
Indicada ao Grammy de 2007 a trilha sonora inclui Chicago, Fifteen years ago e Till the end of Time. O filme levou ainda indicações ao Globo de Ouro, ao festival de Tóquio e rendeu o Oscar de melhor ator coadjuvante a Alan Arkin. A explicação do grande sucesso de Pequena Miss Sunshine não é óbvia, mas marca a estreia com pé direito dos diretores Jonathan Dayton e Valerie Faris. Prova disso foi a indicação a melhor filme no Oscar daquele mesmo ano.
Ainda hoje, dez anos depois, Pequena Miss Sunshine, está na graças do público. Talvez, porque as questões levantadas à época, ainda sejam recorrentes. Talvez, por todos terem o desejo veemente de conquistar algo como Olive ou todos já terem passado pelas revoltas de Dwayne. Às vezes, é preciso uma dose de loucura de Edwin e de insanidade do tio Frank. É preciso desistir de algo como Richard. É preciso persistir em algo como Sheryl. A certeza trazida pelo filme é que de quando em quando precisamos parar nossa Kombi e trocarmos o pneu – e é bom que o estepe esteja em dia.
Mais que comédia ou drama, Pequena Miss Sunshine traz à tona uma sátira às questões que ainda são tabus e outras que, de tão impetradas em nosso senso comum, ainda são vistas com estranheza se fugirmos à normatização. A mais importante – o padrão de beleza moderno – é o ponto chave. Mais que satirizá-lo, Miss Sunshine, quebra-o. Retoma a afirmação de que a beleza, individual e intrínseca, não pode ser medida em fita métrica. Que a busca por uma representação do belo, exclui uma infinidades de apresentações também belas. Engatando a terceira marcha, nos emociona com um final pouco usual, mas que, ao certo, nos desperta o desejo de seguir viagem com a família Hoover.