Nilo Vieira
No último feriado de Tiradentes, a fatídica notícia: o cantor, multi-instrumentista e ator Prince havia sido encontrado morto em seu próprio estúdio. Não tardaram a surgir milhares de homenagens ao redor do mundo – em forma de textos, fotos, covers ou simplesmente por troca de cores em logotipos -, a maioria em referência ao maior sucesso de Prince, “Purple Rain”.
Resumir a extensa carreira do prolífico artista à uma canção (ou mesmo ao disco homônimo do qual ela faz parte) é injusto e grosseiro, visto que Prince permaneceu inquieto e inventivo durante quase quatro décadas. Ao mesmo modo de David Bowie, não apenas produziu material incorporando as tendências de cada momento, como também soube reconhecer e apoiar grandes artistas dos mais diversos tempos – o último deles foi Kendrick Lamar, que por pouco não teve participação de Prince em seu álbum To Pimp a Butterfly.
Mas apontar o álbum Purple Rain como a obra-prima de Prince Rogers Nelson, mesmo que seja senso comum, não é errôneo. Lançado inicialmente como trilha para o filme de mesmo nome do qual faz parte, o LP foi o responsável por catapultar o artista para o status de ícone pop. Junto de Michael Jackson e Madonna, formou o que se pode considerar a santíssima trindade do gênero na década de 80 e, embora tenha vendido menos discos que os dois, é tão ou mais relevante quanto.
O grande mérito de Prince foi ter conseguido unir o melhor de seus contemporâneos supracitados: ao passo em que representou empoderamento para a população negra, seu estilo andrógeno e sua postura no palco fortaleceram o discurso de liberdade sexual que fervilhava na década. Se Prince não tinha os videoclipes simbólicos de Michael ou Madonna, suas performances intensas e a persistência em manter o tom autoral (em vários álbuns, ele compunha, arranjava e tocava todos os instrumentos) foram mais que suficientes para mantê-lo em alta rotação e influenciar um sem tamanho de pessoas, dentro e fora da arte.
Já no quesito sonoro, Purple Rain capta como poucos a estética oitentista, ao mesmo tempo em que ostenta raízes negras da década anterior. Estão ali os solos hendrixianos, o afrofuturismo do Parliament, o swing de James Brown e os coros gospel, dividindo espaço com riffs de hard rock, sintetizadores à la new wave e a aura glam reverberada do pop. Um álbum grandioso, mas nunca pomposo – um bom exemplo é o final rasgado e desesperado de “The Beautiful Ones”, cuja agressividade contrasta de maneira sublime com o clima ameno do restante da canção, e assim a diferencia de qualquer balada cafona e previsível da época – e que passou no teste do tempo com louvor.
O que quase faz esquecer do outro Purple Rain, o longa-metragem. Apesar das atuações afetadas além do normal, alguns diálogos embaraçosos e um roteiro digno de Sessão da Tarde, também teve sua relevância ao mostrar que mesmo um astro de personalidade excêntrica também tem seu lado humano, frágil. Além, é claro, de retratar uma triste história comum – a família dispersa, o marido que agride a mulher, o adolescente negro que tem um sonho e enfrenta obstáculos desde casa para correr atrás, o romance de um casal rebelde – e inspirar possíveis guinadas de mudança. No entanto, diferente do xará musical, o filme envelheceu mal – tanto por aspectos técnicos como por trechos hoje bastante questionados pelos mais engajados politicamente – e não à toa é considerado um elemento secundário do disco, ao contrário do planejado.
Mas nada pode tirar a glória de Purple Rain, que foi realmente um divisor de águas não só na carreira de Prince, como da cultura pop em geral. Desafiador, sexual, ambicioso, perfeccionista – todos esses adjetivos, e incontáveis outros, definem tanto a obra como seu criador; talvez tenha faltado a Prince um final igualmente épico como o de sua obra-prima, mas quis o destino que tudo fosse tão imprevisível como o artista. Todas as homenagens e louros a Prince são justificados e merecidos, e no fim, repetem o mesmo acontecimento de quando Purple Rain se tornou um sucesso: uma chuva se tornando tempestade.
2 comentários em “Prince: a chuva que virou tempestade”