Nilo Vieira
O Grammy, assim como o seu primo cinematográfico, é uma premiação criada e controlada pelos mais ricos executivos da indústria cultural. Um evento que depende de, vende e reforça anualmente os mesmos padrões sonoros e estéticos que lhe são convenientes – e tome cantoras despejando vocalizações pomposas, cantores requentando músicas manjadas para homenagear artistas consagrados, dentre outros pedantismos -, impondo escolhas comercialmente viáveis como o crème de la crème artístico. Com o mínimo de apuro crítico, tamanho elitismo cultural é perceptível a olho nu, até porque não se trata de um fenômeno recente.
No entanto, apesar dessa parcialidade escancarada, às vezes surgem obras tão inquestionáveis que parecemos esquecer os mecanismos perversos do sistema. É o caso de “To Pimp A Butterfly”, terceiro disco do rapper Kendrick Lamar, que desde seu lançamento em março do ano passado, arrebatou crítica (foi escolhido por 48 listas de publicações respeitadas como álbum do ano) e fãs. Foi de longe o disco mais comentado de 2015, então existia a hipótese: seria a indústria teimosa o suficiente para não reconhecer a majestade de Kendrick? A resposta afirmativa se deu com o prêmio de “Álbum do Ano” indo para a cantora pop Taylor Swift, que já contava com sete troféus do Grammy em seu histórico.
Dizer que “1989”, álbum escolhido pelos executivos do Grammy como vencedor, não possui seus méritos é leviano, e se revela mais como birra juvenil do que como crítica. Todavia, se a noite do 58ª Grammy Awards consolidou o brilhantismo de algum dos artistas presentes, foi de Kendrick Lamar. Sua performance na cerimônia foi histórica: contrário ao histrionismo que dominou todas as outras apresentações – incluindo a da própria Taylor -, Lamar não caiu em exibicionismos clichês. Utilizou de elementos cênicos para fomentar a crítica social transmitida em sua obra, apresentou arranjos novos para suas canções e deixou claro que jamais colocaria a mensagem de suas letras em segundo plano. Ciente de seu papel como artista influente, o rapper fez questão de ostentar suas raízes negras, em âmbito local (referências à sua cidade natal, Compton, conhecida por sua tradição no hip hop) e mundial (pinturas tribais e danças típicas do continente africano). Assista a performance completa em alta qualidade aqui.
Para realizar a manutenção de suas engrenagens, o Grammy daria o “Melhor Álbum de Rap” (além de elegê-lo vencedor em outras quatro categorias consideradas de menor porte) a Lamar, quase como prêmio de consolação. “To Pimp A Butterfly” era concorrência desleal para os outros candidatos, tamanha é sua sofisticação, e a vitória não foi nada menos que obrigatória e óbvia. Foi a maneira de cercear o poder do disco ao seu nicho de origem, como que dizendo que Lamar só seria destaque para a premiação se não concorresse com artistas brancos – em 2013, perdeu nessa mesma categoria para o duo Macklemore & Ryan Lewis, ambos caucasianos, mesmo com seu álbum “good kid, m.A.A.d city” sendo favorito.
A produção sonora explora diversos ritmos musicais negros: estão ali traços do jazz frenético de John Coltrane, o funk repleto de groove de James Brown, o afrobeat vanguardista de Fela Kuti, as batidas pesadas típicas do hip hop da costa oeste dos EUA e as texturas futuristas do produtor Flying Lotus. Toda essa diversidade é pensada de modo quase milimétrico no disco, e o resultado é um produto eclético e perfeitamente coeso.
Essa riqueza instrumental é o fundo ideal para o discurso ácido de Kendrick, ora agressivo como no single “The Blacker The Berry”, ora irreverente como no interlúdio “For Free?”, mas sempre crítico. Evocando importantes figuras da resistência negra, indaga-se o quanto a história realmente mudou para o povo negro. Lamar denuncia o racismo, critica rappers com discurso politicamente supérfluo, acusa indústria e crítica musical de boicote a músicos de hip hop, questiona sobre as reais possibilidades de ascensão social de seu povo, denuncia a violência policial, exalta suas origens, incita o amor próprio e ao mesmo tempo se condena. Traçando um grande zeitgeist da história negra, converte todos os exemplos de oposição ao sistema opressor em um grande mecanismo de contra-ataque: Kunta Kinte, Nelson Mandela, Malcolm X, Panteras Negras, Martin Luther King Jr., Tupac Shakur – todos estão ali, convocando seus irmãos de luta à ação incessante. Não à toa, a canção “Alright” se tornou hino das manifestações negras contra abusos policiais realizadas nos EUA em 2015, bem como o próprio presidente Obama reconheceria a magnitude da mensagem de Kendrick.
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De modo similar ao que o também rapper Kanye West fez no magnânimo “My Beautiful Dark Twisted Fantasy”, em ”To Pimp a Butterfly” Kendrick reflete sobre as consequências de sua fama, em sua vida pessoal e na maneira como sua posição influente afeta as pessoas ao seu redor. Embora reconheça seu enorme potencial, reconhece suas falhas: “O mundo saberá que dinheiro não pode impedir uma fraqueza suicida”, canta Lamar em “u”. A religião surge, em ambos os discos, como alicerce para a retomada de forças e a continuidade da luta por direitos onde os rappers se manifestam como líderes. A diferença das duas abordagens discursivas se dá em como a pergunta final (em qual direção seguir?) é feita: ao passo em que West parece se questionar na primeira pessoa do singular, Lamar o faz na primeira pessoa do plural.
É curioso notar que tanta repercussão não veio de campanhas de marketing ou longas turnês. Ao invés disso, optou-se por apresentações esporádicas na TV e em ocasiões especiais, além de investimentos fortes em videoclipes elaborados – o último deles juntou duas músicas do álbum, “u” e “For Sale? (Interlude)”, em um curta-metragem chamado “God is Gangsta”.
Kendrick deixou sua arte falar por si só, e a mensagem ecoou com louvor por todos os cantos do planeta. A opção em finalizar sua participação no Grammy deste ano com uma inédita canção sem título (“Untitled 3”) só reforça seu poder como artista: sequer é necessário nomear uma música, basta se entregar completamente e ter confiança no próprio trabalho. Mesmo dentro de um sistema injusto e racista, se recusou a suavizar sua fala e, mesmo com a censura dos “palavrões” em “The Blacker the Berry” e “Alright”, manteve suas convicções firmes. Apesar de não ter levado a vitrola dourada mais cobiçada da noite, Kendrick Lamar saiu como o real vencedor da noite – e deu indícios de que sua jornada não irá cessar tão cedo.
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