Álbum do Neutral Milk Hotel faz 20 anos com fama de clássico cult moderno, adorado principalmente em círculos da internet. Se hoje as piadas e o status de intocável podem afastar pessoas do álbum, é interessante lembrar porque a visão do compositor Jeff Mangum repercutiu em primeiro lugar.
Lucas Marques
No livro de Kim Cooper sobre In The Aeroplane Over the Sea há uma anedota que coloca o disco em uma casca de noz: os membros do Neutral Milk Hotel estavam em uma costumeira visita a um museu de penny-arcade (antigas máquinas de entretenimento, que vão desde os primeiros jogos de pinball até cartomantes e bonecos assustadores de tecnologia analógica), quando o soprista Scott Spillane olha para trás e leva um susto, de gelar a espinha. O motivo da surpresa era uma menina de 10 anos, muito parecida com Anne Frank. Spillane então chama o vocalista e compositor Jeff Mangum e ambos ficam atônitos, perguntando se estavam vendo um fantasma.
Aos não familiarizados com o culto de In The Aeroplane Over the Sea aqui vai uma breve explicação (e a justificativa da história mencionada): lançado em 1998, o segundo e último disco do Neutral Milk Hotel, além de ser o ponto máximo da proposta musical de fusão de folk, rock lo-fi e gêneros norte-americanos antigos, é um intricado álbum conceitual de Jeff Mangum que envolve surrealismo, penny-arcade (e a cultura de massa antes dos anos 1950) e Anne Frank. Diversas faixas possuem referência a garota judia vítima do Holocausto, cujo diário relata sua estadia na Holanda durante a ocupação nazista na IIª Guerra Mundial.
No decorrer dos anos o disco atingiu o status de cult, e Jeff Mangum de herói indie. Os motivos para isso são aparentes já nas primeira audições e leituras adicionais: a principio porque foi a última obra Jeff Mangum, que permaneceu afastado da mídia até aceitar turnês em 2012 e participar das ocupações de Wall Street. Depois de gravar o disco, o compositor sofreu um ataque nervoso e passou alguns anos em uma busca espiritual. Eventualmente ele voltou a auxiliar nas gravações de bandas do selo Elephant 6 e a fazer música e outras artes sem pretensão de lançamento.
Enquanto a gravadora Merge esperava que o álbum vendesse 5500 CDs e 1600 vinis, as vendas ultrapassam as quatro centenas de milhares. Mais do que isso: os mistérios envolvendo o disco se potencializaram com a internet, produzindo uma comunidade bastante ativa em torno do álbum, além de diversos memes. A condição de cultuação se dá principalmente por ser um álbum conceitual como nenhum outro. Não há uma história aparente ou temática em comum em todas as faixas, porém cada nota e imagem evocadas por Mangum e sua banda parecem pertencer a um mesmo universo.
Mangum, para atingir uma uniformidade estética, restringe as estruturas musicais em progressões simples e escolhe um conjunto de imagens a ser explorado no decorrer do álbum. Tais estruturas musicais triviais remontam gêneros populares norte-americanos e europeus, como a canção folk, a marcha fúnebre, as bandas marciais e o doo-wop dos anos 1950. Como o álbum foi gravado nos anos 1990 por músicos underground, há também muito barulho e ruído.
Ao contrário de muitas bandas do mesmo período, o Neutral Milk Hotel pode ser considerado o grupo que teve êxito em fundir o passado com o presente norte-americano. Justamente porque eles não caíram na ilusão de apenas ligar o overdrive nas guitarras para “modernizar”, mas se utilizaram de uma variedade de instrumentos e técnicas para criar camadas que preenchem as estruturas. Alguns dos equipamentos não são nada comuns a uma banda de rock, como gaita de fole, serrote e trompa.
Atrás e na frente de todos esses instrumentos está, respectivamente, o violão e a voz de Mangum. As primeiras coisas que ouvimos no álbum são três notas batidas no violão – Fá, Si bemol e Dó, que se repetem na faixa inteira – e o verso de abertura na voz anasalada de Mangum: “When you where young you were the king of carrot flowers” (quando você era pequeno você era o rei das flores de cenoura). Um verso que, com apenas mais 11 da mesma faixa, nos coloca em uma posição quase infantil, na qual sentimos tudo com uma intensidade mitológica. Alguns dos principais temas do disco já estão aí: as famílias desestruturadas, as primeiras descobertas sexuais, o suicídio e a autodestruição.
A segunda faixa, “King of Carrot Flowers Pts. Two & Three”, continua a canção anterior e é onde o Neutral Milk Hotel ataca como um coletivo. Nos primeiros minutos da música, Mangum, assim como em um cântico religioso, berra que ama Jesus Cristo, algo que nenhum outro indie rocker ousou fazer. Pouco depois a música estoura em conjunto de instrumentos de sopro, guitarra ruidosa, bateria pesada e o vocal irrefreável. Tudo muito, muito alto, mas sem nenhum elemento excedendo o outro.
No livro de Kim Cooper (o mais vendido da série 33 1/3) sobre o álbum é explicado como a banda atingiu essa unidade sonora que se manifesta nas faixas mais barulhentas (e também as mais acessíveis), como “Holland, 1945” e “Ghost”, além dos instrumentais “The Fool” e “Untitled”. Enquanto no disco anterior, On Avery Island (1996), não se tinha uma banda propriamente – resumindo-se às composições de Mangum e as ideias do produtor Robert Schneider -, para In The Aeroplane Over The Sea foram recrutados Julian Koster (acordeon, banjo, entre outros instrumentos), Scott Spillane (uma variedade de instrumentos de sopro) e Jeremy Barnes (bateria e órgão).
Spillane e Schneider eram amigos de Mangum desde a adolescência em Ruston, cidade do estado da Louisiana, e Koster mantinha correspondência e os visitava em algumas ocasiões. Mangum, Schneider e mais alguns adolescentes de Ruston fundaram o selo Elephant 6, o qual posteriormente cresceu nas cidades de Denver e Athens, difundindo proposta de revitalização indie de gêneros antigos e rock psicodélico. O selo tem também as bandas Apples in The Stereo (liderada por Scheider) e Olivia Tremor Control como suas principais representantes.
O Neutral Milk Hotel se reuniu integralmente pela primeira vez em Nova York e conta-se que tocavam por horas a fio, desenvolvendo a sonoridade das composição que Mangum trabalhava diariamente. Mas foi com a produção de Scheiner que o grupo pôde adquirir sua identidade definitiva: as técnicas de gravação atingiam ápices de altura sem se utilizar de truques artificiais, apenas explorando os equipamentos, dobrando instrumentos e vocais, criando camadas. O resultado são músicas que abraçam a estética lo-fi (definição baixa) com instrumentos e performances não convencionais ao gênero.
A faixa homônima é outro grande exemplo da proposta sonora do disco, na qual é possível ouvir como é preenchida uma progressão simples e clichê do folk (Sol, Mi menor, Dó e Ré): destaque para o serrote fantasmagórico e os sopros que inspiraram uma geração de música indie inteira, desde The National até Mumford & Sons. Na parte de Mangum, a canção é especial por ser a primeira a fazer referência a Anne Frank e condensar a essência bela, mas terrivelmente triste de sua lírica. O próprio verso que tem o nome da faixa e do álbum é uma reflexão surreal sobre a vida: “And one day we will die/ and our ashes will fly/ from the aeroplane over the sea” (e um dia vamos morrer/ e nossas cinzas vão voar/ do avião sobre o mar).
Mas é em “Two-Headed Boy” que a obra chega a seu primeiro momento extremo, desses de dividir ouvintes. Mangum canta no topo de seus pulmões, desperado, rompendo o isolamento de qualquer fone de ouvido. Berra imagens aparentemente sem sentidos, mas com uma força imperturbável. Teorias não faltam sobre o assunto da música: sexo, feto abortado, a experiência de ouvir música, o amor por Anne Frank. De qualquer maneira, tudo é envolto em um misto de beleza e tristeza pré anos 60; gosto de comparar aos primeiros filmes de David Lynch, Eraserhead e Homem-Elefante, mundos de anomalias corporais, atrações circenses e inocência.
Da mesma maneira que Lynch diz se apaixonar por seus universos oníricos – no qual convivem o sonho e o pesadelo – a atração do mundo lírico de Mangum também vem com uma dose de náusea. Em “Communist Daughter” ele canta sobre topos de montanha que escorrem sêmem. Estranhamente, é uma das faixas mais bonitas do disco. Tudo está em como e não no que é tocado.
Entre garotos de duas cabeças e garotas tocando piano em chamas, temos algum relances de elementos reais e contemporâneos. Nada muito revelador, nem com tempo atribuído. Mas sobretudo são versos que remetem a uma ligação entre o inconsciente e acontecimentos reais ou sobre a relação do passado com o presente.
Grande parte das canções e ideias do álbum já existiam muitos anos antes da gravação. O Neutral Milk Hotel foi lentamente retirando e atribuindo elementos a fim de criar esse universo. Não é possível pensar nessa trajetória sem consideram Jeff Mangum antes e depois de “O Diário de Anne Frank”. Em uma entrevista de 1998 com o jornalista Mike McGonigal, Mangum diz ter passado 3 dias chorando após ler o livro. Amigos contam que ele andava com a obra debaixo dos braços. Anne Frank era a peça que faltava a sua visão.
Em diversas faixas, mas sobretudo em “Ghost”, Mangum canta sobre um fantasma que vive com ele. Uma linda metáfora a histórias que nos afetam profundamente, mesmo escrita anos atrás em realidades completamente diferentes das nossas. A relação mais concreta que podemos ter com a ressurreição, em como humanos podem viver depois de falecerem. É de cortar o coração quando, no meio dos convulsos oito minutos de “Oh Comely”, Mangum abaixa a voz e canta:
I know they buried her body with others
Her sister and mother and five-hundred families
And will she remember me fifty years later?
I wished I could save her in some sort of time machine
Versos como esse nos mostram que é difícil conviver com o passado, seja as atrocidades cometidas na história ou nossos próprios erros. O tempo também agiu de modo curioso com o Neutral Milk Hotel. Enquanto Jeff Mangum ficou anos fora dos palcos e ainda não lançou outra obra inédita, In The Aeroplane Over the Sea é um dos mais curiosos casos de culto dos últimos 20 anos. Os sons derradeiros que o compositor emite no álbum são seu violão sendo acomodado e os passos para fora de cena, porém a obra sozinha ressoou grandemente. O fantasma de Anne Frank permanece vivo conosco.
Muito obrigado pelo excelente texto.