O que André Breton, o fundador do movimento Surrealista, e ratos em um metrô de Nova Iorque têm em comum? Ambos ajudaram o mundo a acreditar em uma realidade mais imprevisível, onde sonhos se misturam ao real, e ratos urbanizados carregam pedaços de pizzas em estações de metrô.
Henrique Antero
Em Setembro de 2015 um comediante pequeno de Nova Iorque chamado Matt Little fez o upload de um vídeo de 15 segundos que, embora ele ainda não soubesse, iria se tornar um fenômeno e ser reproduzido na maioria das emissoras de TV do país. O vídeo mostra um ratinho persistente carregando um pedaço de pizza pelas escadas de uma plataforma de metrô. Segundo nova-iorquinos, o vídeo se tornou amado por representar o espírito da cidade. Com a quantidade de pedaços de pizza e ratos pela cidade de Nova Iorque, o senso comum diria que um evento como esse estava fadado a acontecer. A verdade, porém, é um pouco mais bizarra.
Dois meses após “Pizza rat” se tornar um viral, algo mais incrível aconteceu em condições bem similares. Um homem que dormia em uma estação de metrô foi surpreendido por um rato vaidoso que conseguiu desbloquear seu celular e tirar uma foto com a câmera do aparelho. O rato recebeu o título de “Selfie rat” e se tornou uma sensação na internet assim como seu primo fã de pizza.
Em um espaço de três meses, dois ratos foram gravados fazendo coisas bem humanas, se não completamente absurdas. Seria muito conspiratório pensar que alguém havia treinado esses ratos para executar ações mirabolantes, gravado o momento, e enviado os vídeos para emissoras de TV sob um nome falso esperando que os vídeos viralizassem? Porque foi exatamente isso o que aconteceu.
“Selfie rat” e “Pizza rat” poderiam ter encontrado o destino comum para vídeos engraçados na internet: consumidos em poucos dias pela inteligência coletiva e esquecidos posteriormente para ser lembrado apenas naquelas festas chatas onde todo mundo quer mostrar um vídeo de youtube mais engraçado que o anterior. A história real—se é que podemos usar essa palavra—só foi revelada meses depois, e forçosamente. Uma pessoa reconheceu o homem que dormia no vídeo do “Selfie rat” como Eric Yearwood, um ator, e o site Gothamist publicou a notícia de que “Selfie rat” era falso, um hoax, e que o mesmo poderia ser verdade para “Pizza rat”. Eric admitiu: sim, ele fez parte do vídeo, mas que foi contratado por uma pessoa que ele não conhecia a identidade. Ela se refere a si mesmo como “Zardulu”. Eric nunca a viu sem máscara. Sua casa, segundo Eric, parece um misto de “um estúdio de uma artista, e um laboratório de química”, com direito a um grande “labirinto” usado para treinar ratos.
Zardulu, por falta de uma palavra melhor, é uma artista. Mas no lugar de quadros, Zardulu cria virais para a internet de eventos absurdos. Desde que seu trabalho e seu pseudônimo se tornaram mais públicos, Zardulu vem reivindicando a autoria de outros acontecimentos: como a prótese de perna que foi encontrada junto de um castor, o guaxinim que foi visto pegando uma carona em um jacaré, o bagre de três olhos, e os gatos que tiveram os pelos da barriga raspados. A artista (ou o coletivo de artistas, como alguns inevitavelmente acreditam) agora mantém uma página de Facebook e uma conta no Twitter.
It's not enough to wish the world were more magical, sometimes you have to be the magician
— Zardulu (@zardulu) February 22, 2017
“Não é o bastante desejar que o mundo fosse mais mágico, algumas vezes você precisa ser o mago”
Há muita coisa interessante para se falar sobre Zardulu, mas eu sinto que nenhuma dessas coisas se refere à sua identidade. Zardulu se refere à si mesma como a “Mythmaker” (a “Criadora de Mitos”, em português), e se queremos entender seus virais como uma forma de mito, sua identidade deve ser a menor das preocupações: até mesmo contraproducente, destruindo a vaga sensação mágica que sua anonimidade produz.
Existe uma quantidade saudável de paranoia, também. Em uma época de combate à “fake news” e após o dicionário Oxford ter eleito “pós-verdade” a palavra do ano, é natural desconfiar do modus operandis de Zardulu. Afinal, até onde vai o buraco do coelho? Primeiro ratos no metrô, daqui a pouco um rato sendo eleito presidente? O que é real, o que não é? Existe um véu muito fino que separa a ficção e a realidade, o artista e o místico, o mito e o mundo físico. No caso de Zardulu, pode ser melhor crer que esse véu não exista, que a vez de um rato na presidência dos Estados Unidos vai chegar. Pode não ser plausível, mas é no mínimo mais interessante.
Zardulu argumenta em uma entrevista para o Washington Post que existe uma diferença fundamental entre a sua arte e “fake news”. “Meus mitos não servem nenhum propósito além da apreciação e diversão das pessoas”, disse ela. Mas o que significa um mito para Zardulu? O panfleto “Fundação e Manifesto do Zardulismo”, escrito por Zardulu, pode nos dar uma boa noção.
Na primeira página, Zardulu diz: “Em seu sentido clássico, mitos estão mortos. […] Entretanto, os mesmos arquétipos do nosso subconsciente primitivo continuam a se reafirmar nas tradições modernas.” E aqui encontramos a cruz do argumento de Zardulu: aqueles que desejam “nos explorar” sabem do poder dos mitos, e assumiram “o papel de contador de histórias”, tomando então o poder de “definir nossos valores e visão de mundo”.
“Imagens deslocaram a interação humana autêntica. […] imagens produzidas para ditar o que precisamos e desejamos”. A crítica de Zardulu—e o seu método de atuação—podem ser facilmente conectados à organização Internacional Situacionista (SI), um grupo de artistas e intelectuais do século XX que bebiam do Dadá e do Surrealismo mesclado à uma forte tendência marxista.
Release your visionary imagination and you will find a sense of connection with the universe pic.twitter.com/hve9SNtJAp
— Zardulu (@zardulu) May 12, 2016
A SI criticava o “capitalismo avançado”, a integração extensiva do modelo capitalista a todos os aspectos da vida e da cultura. Em outras palavras: o capitalismo como mito; o mito como “os blocos dos quais a criatividade e a imaginação são construídos”, como diz Zardulu. Aliado a isso, os Situacionistas reconheciam o “espetáculo”, a crescente mediação das relações sociais através dos objetos, e a redução da experiência humana através dele. Zardulu parece concordar, e a sua escolha de usar a internet como parte essencial da sua arte chega a ser irônica: uma figura de linguagem que representa bem a era da internet e o deslocamento da “interação humana autêntica” (i-ro-ni-a: substantivo feminino 1. [retórica] figura por meio da qual se diz o contrário do que se quer dar a entender;)
Após a crítica social inseparável de qualquer manifesto, Zardulu finalmente define o movimento “Zardulismo” após páginas de frases criptografadas, que ninguém parece ter decifrado publicamente ainda: Zardulismo é “a arte de criar e perpetuar mitos”, ou de forma mais extensa: Zardulismo é “o mistério que desejamos em uma tentativa de se opor ao nosso domínio e entendimento do mundo. É uma fuga de nosso estado artificial de absoluta racionalidade e a expectativa de que funcionamos como máquinas.”
Através do treinamento de ratos e da taxidermia, Zardulu pretende criar pequenas “pérolas”, momentos contidos que nos façam questionar a realidade, ou acreditar que a super-realidade é possível; acreditar, por exemplo, que um dia você pode entrar em um restaurante, pedir uma lagosta grelhada, e te servirem um telefone cozido, como Dalí imaginou.
Me parece que não seria um absurdo perguntar então: Zardulu consegue criar essa fuga? Consegue, ainda que por alguns segundos, “resolver as condições contraditórias entre o real e o sonho”, trazer à tona a sur-realidade de André Breton, ou construir uma “situação” que desperte as pessoas e os seus desejos autênticos? Eu não sei. Mas fico feliz por alguém estar tentando.