Brasil, um país de extremos

Nilo Vieira

Não é novidade alguma afirmar que o Brasil é um país de contrastes. Em contraponto à beleza natural do país, a desigualdade social sempre se fez presente. Ao passo em que a miscigenação nos trouxe tanta riqueza cultural, os mais peçonhentos tipos de preconceitos nunca abandonaram nossa sociedade. O carisma do brasileiro sempre encontrou no oportunismo dos tiranos um grande inimigo; e por aí vão os incontáveis arquétipos intrínsecos à nossa história. Apesar de alguns avanços notáveis, a Terra de Vera Cruz continua não sendo um país de todos e nem para todos.

Quando o assunto é música, esse contraste toma proporções interessantes. Pode-se afirmar que é nesse ambiente que o famigerado “jeitinho brasileiro” se manifesta em sua forma plena (ou mesmo de modo em que não haja prejuízos para nenhuma pessoa): foi no mesmo estado do Rio de Janeiro, por exemplo, que os complexos ritmos da bossa nova e os batidões grudentos do funk carioca surgiram. Mesmo sob circunstâncias extremamente adversas, os artistas brasileiros sempre conseguiram encontrar um meio de se expressar e se fazerem ser ouvidos – o melhor exemplo está no período da ditadura militar (1964-1985), que rendeu a maior parte dos discos considerados como clássicos inestimáveis da música brasileira e álbuns bastante peculiares, mas que não receberam os mesmos louros.

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Max “Possessed” Cavalera, Wagner “Antichrist” e Igor “Skullcrusher” Cavalera: o único Sepultura tr00 possível

É o caso do metal extremo surgido em Belo Horizonte, terra natal da maior banda do estilo, o Sepultura. Todavia, antes da banda ganhar o globo e lançar tendências, o grupo fundado pelos irmãos Cavalera já dava tons brasileiros ao que haviam ouvido de bandas como Death e Metallica: os dois primeiros lançamentos da banda (o ep Bestial Devastation e o álbum Morbid Visions, respectivamente de 85 e 86) traziam um som executado de maneira tão primitiva e sinistra que, até o dia de hoje, rotulações se mostram bastante complexas. Os instrumentos não eram top de linha, e essa podreira só aumentava com as gravações de baixo custo. Além disso, as letras eram, literalmente, um punhado de blasfêmias traduzidas para o inglês – tudo isso criado por pivetes revoltados, que haviam acabado de abandonar os estudos.

Ao passo em que o Sepultura seria o maior nome metálico brasileiro mundo afora, foi justamente sua banda rival que se consagraria como a melhor representação do cenário underground de BH no pós-chumbo. O Sarcófago seria vanguardista já no aspecto estético, adotando o visual com corpse paint no rosto, spikes nos braços e fivelas de bala atravessando o tronco e na cintura – anos antes de bandas estrangeiras o fazerem e ganharem fama por tal. O som não ficava atrás; o álbum de estreia da banda, I.N.R.I (1987), era um híbrido de thrash, black e death metal com níveis de violência inéditos para a época, cujo choque é sentido até hoje: segundo o respeitado portal Metal Archives, o black metal é o subgênero com mais bandas nacionais registradas, e não é exagero afirmar que nenhuma delas seria a mesma sem a existência do Sarcófago.

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Peça esse disco para sua mãe no natal

No documentário Ruído das Minas, M. Joker (baterista do segundo disco do grupo) afirma que D.D. Crazy, seu antecessor nas baquetas, foi um dos primeiros a executar a técnica do blast beat – ou “metranca”, como ficou conhecida em solo brasileiro. Não apenas isso é uma verdade, como sua abordagem no instrumento seria seminal para o surgimento de uma ramificação ainda mais obscura do heavy metal: o war metal (sim, isso existe!). Nesse mesmo estilo, aliás, outra banda mineira também causaria bastante controvérsia, já no nome: o Holocausto, com um disco singelamente intitulado Campo de Extermínio. Embora menos marcante que seus conterrâneos, merecem destaque não só pela imagética fortíssima de guerra (que, como de praxe, rendeu e ainda gera polêmicas, com o grupo frequentemente tendo de reafirmar que se trata apenas de uma narrativa descritiva para chocar e alertar as pessoas, e não uma exaltação aos horrendos princípios nazistas), como pela opção de cantar em português – embora, do mesmo modo que com o Sepultura e o Sarcófago, dificilmente você irá compreender as letras sem o encarte em mãos.

Fora do estado de Minas Gerais, três outros registros merecem menção. O primeiro e talvez mais obscuro deles é o split Botas, fuzis, capacetes / Brigada do ódio (1985), cujo lado B (assinado pela banda de mesmo nome) é composto exclusivamente de canções de curtíssima duração e absurdamente barulhentas, elevando o punk paulistano a outro patamar de agressividade, já adiantando o que mais tarde seria rotulado como grindcore e noisecore. Ainda no estado de São Paulo, o Vulcano, formado em 1980, é considerado como a primeira banda extrema de toda a América latina, e seu Bloody Vengeance (1986) é tido como um dos álbuns de thrash mais primitivamente pesados daquela década. Já o Stress, oriundo de Belém do Pará, é defendido pelos mais fervorosos como a primeira banda de thrash metal da história, visto que sua estreia homônima saiu um ano antes de Kill ‘Em All (1983), do Metallica, considerado como o pontapé inicial do gênero – pessoalmente, acredito que o som do Stress esteja mais próximo aos moldes do Judas Priest, mas a discussão é bastante válida.

Apesar do culto de nicho ainda permanecer, tais álbuns ainda recebem muito pouca atenção, tendo sua relevância histórica praticamente anulada graças à uma imprensa muitas vezes elitista e preconceituosa – vale ressaltar que o supracitado Ruído das Minas é uma exceção, e mesmo assim, passa longe de ter o poder que devia. O argumento de que o heavy metal não é um gênero legitimamente brasileiro não só não convence, como também preocupa: nessa mesma estirpe reducionista, se permitem afirmações como a de que a bossa nova é mera ramificação do cool jazz norte-americano e o funk carioca apenas uma cópia do miami bass, o que é obviamente uma mentira descabida.

Há sempre de se relembrar o contexto social das obras em questão: para os dias de hoje, o Sarcófago dos primórdios pode soar tosco e infantil, mas a banda surgiu como um grito de protesto contra a sociedade conservadora (militar e religiosamente) da época, com tudo sendo feito na raça – é justamente no fato da banda não ser fluente em inglês e nem ter músicos de técnica invejável que a urgência de seu trabalho reside; e por isso mesmo, em uma época onde se encontra uma escola de inglês a cada esquina, que as mil cópias atuais soam caricatas e até desonestas.

No fim das contas, a situação não deixa de ser sintomática. Do mesmo jeito que músicos “malditos” como Tom Zé, o Sepultura precisou antes fazer sucesso em outros continentes para então despertar interesse na crítica brasileira; talvez seja apenas questão de alguns anos para o mesmo se repetir com as outras bandas deste texto, mas parece improvável. Mais de quinhentos anos depois, o Brasil continua sendo um país de cultura riquíssima, mas de extrema polarização.

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