Egberto Santana
De uma forma inusitada, o sexteto canadense Arcade Fire anunciava em sua conta do Twitter o comercial de uma caixa de marshmallows com o nome da quarta faixa do novo álbum, “Creature Comfort”. Colorido e infantilizado, o vídeo é rápido e acompanha a voz de Régine Chassagne cantando o refrão da música. Voltando no tempo e acompanhando essa jogada de marketing, era possível perceber a forte oposição entre o eletrônico e letras carregadas de críticas sociais e reflexivas que a banda entregou no seu quinto álbum de estúdio, Everything Now.
.@EverythingNowCo is pleased to announce an exciting new Arcade Fire tie-in. Please enjoy CREATURE COMFORT pic.twitter.com/qx7iNZCiR0
— Arcade Fire (@arcadefire) 14 de junho de 2017
O estranhamento perante a composição do comercial começa ao ouvir a letra da música. Enquanto no primeiro aparece a legenda de “100% fun”, se referindo ao sentimento que os marshmallows causarão na pessoa, a letra em si trata sobre depressão, possuindo a “criatura confortável” como a saída “indolor” (“make it painless”, trecho que aparece tanto no comercial quanto na música) para a descrição da vida dos personagens da letra. Uma interpretação mais exagerada poderia concluir que os marshmallows seriam a saída, estando envenenados e não causando dor, apenas diversão. Sem os violoncelos e as guitarras de costume, a batida é composta por sintetizadores rápidos e acelerados no fundo, com os vocais do casal protagonista da banda, Win Butler e Régine Chassagne.
Se nas letras conseguimos identificar o nome por trás de hits cantados pelo público do Lollapalooza – especificamente na edição de 2014 no Brasil- como “Wake Up” e “The Suburbs”, é na música que transparece a nova cara dos conceituais de Montreal. Com produção de Thomas Bangalter (Daft Punk), a vibe de baladas discos dos anos 80, facilmente transpostas para o episódio San Junipero, da série Black Mirror, percorre quase todas as músicas de Everything Now. Em Reflektor, produzido por James Murphy (LCD Soundsystem), vimos o começo da cara nova da banda. Mas, se no antecessor o rock marcava presença e o Haiti continuava trazendo suas origens, no novo disco entra o pop exacerbado e dançante.
O álbum não trata apenas de suicídio. É inegável a criatividade e variedade de temas que Win Butler já abordou. Morte, infância, perdas, traumas, crescimento e a vizinhança em Funeral, o primeiro disco do grupo. Excesso de tecnologia em nossas vidas em Neon Bible. A adolescência em The Suburbs. A diversidade, a religião, a influência do Haiti – esses dois últimos como temas recorrentes nas produções – e a relação do real com o ilusório em Reflektor. Agora, o dedo na ferida nos nossos comportamentos na sociedade entra no encarte do novo trabalho.
Aí se encontra a peculiaridade do grupo que não se perdeu durante o tempo. Na musicalidade, os canadenses deixam a desejar, mas nas letras o bom trabalho continua. Apontamentos pertinentes aos nossos vícios e excessos são feitos em forma de narrativa e poesia. No entanto, os novos caminhos que a banda toma durante o desenvolvimento do álbum quebram com a musicalidade triste e relaxante de costume e apresentam uma marca que difere das palavras.
O álbum inicia com o primeiro single divulgado, “Everything Now”, a partir de uma melodia que faria Adorno e Horkheimer desgostosos, mas uma letra que deixaria os filósofos emocionados. Metáforas bancárias (“I’m in the black again”) e o coral entoado pela banda compõem a faixa, que critica o excesso de conteúdo idêntico ao nosso redor, fazendo o eu-lírico ter a noção de “precisar ter tudo agora”. Em meio ao som de balada indie, um sample da flauta de Francis Bebey pode ser escutado – o encontro do erudito com o pop. Se uma não é o bastante, temos três “Everything Now”, diferenciadas pelo vocal arrastado de Win ou a lentidão de fim de festa, podendo ser escutado do começo do álbum ou fim do mesmo.
“Peter Pan” e “Chemistry” marcam a metade do álbum em contraste com todas as outras. A primeira e mais fraca das 13 faixas tenta uma canção de amor inspirada em Peter Pan e falha em animar o fã. Em contraste, a sexta faixa do álbum resgata um pouco as baterias e guitarras antes esquecidas e dialoga com “Signs of Life”. Enquanto uma retrata o pensamento de um homem apaixonando, a outra fala dos relacionamentos da nova geração– “love is hard, sex is easy” -, em busca de sinais de vida em bares noturnos.
A temática religiosa é lembrada na décima faixa, “Good God Dam”. Contada pelo ponto de vista de uma das personagens de “Creature Comfort”, a existência de um bom Deus é questionada por uma pessoa prestes a se matar e acompanhada do violino de Funeral – Win menciona o primeiro álbum em “Creature Comfort”. Letras felizes ou animadas são raras de se achar nos álbuns da banda, mas, com exceção de Reflektor, você sentia a tristeza tanto da música quanto da letra. Era algo que mesmo que se desse para dançar, não era feito para uma balada ou festa. Essa combinação se perde no novo trabalho.
Nem Régine se encontra nesse álbum. Dona de uma voz de destaque, ela protagoniza a nona faixa do álbum, “Electric Blue”. Facilmente imaginada para estar em um clube de disco dos anos 80, a repetição do refrão com sua voz cansa e o excesso do pop baladeiro não encaixa. Nos faz sentir saudades de “Sprawl II”, também cantada por ela em The Suburbs. No entanto, a voz feminina do grupo faz uma bela participação junto ao seu parceiro de vida e de banda em “Creature Comfort”. Tanto pela sonoridade, que diverge entre as velocidades, quanto pela já mencionada boa letra.
Talvez o maior acerto do álbum é encontrado na sétima faixa, “Infinite Content”. Mesmo sem uma grande composição lírica, ela é curta e sucinta, sem precisar de grandes experimentações como outras. A sociedade do consumo é explicitamente criticada ao dizer que todo o nosso dinheiro já está gasto em conteúdos infinitos. Em seguida, a próxima faixa de mesmo nome (“Infinite_Content”) fica mais devagar e finaliza com o barulho de produtos sendo passados em um caixa de supermercado. Um exemplo de como o impacto pode ser causado sem apelar aos sintetizadores.
Se levando para casa o prêmio de melhor álbum do ano no Grammy de 2011, por The Suburbs, a banda entrou de vez nos holofotes da mídia, fica difícil dizer. No entanto, é fato que os dois últimos álbuns compõem um quadro bem diferente da orquestra conhecida pelos fãs no debut Funeral.
Ao entregar um álbum pop, industrial e dançante e apresentar um marketing que se assemelha ao mesmo produto, como publicar uma falsa resenha escrita pela própria banda em um site falso antes do lançamento, usar o rosto das socialaites Kendall e Kylie Jenner em uma camiseta do álbum e vender Fidget Spinners por 110 dólares, torna-se uma incógnita dizer se foi tudo proposital. A verdade é que os antes independentes elogiados por David Bowie se reinventam em um álbum com diferentes sonoridades, abusando do eletrônico a fim de criar músicas chiclete e animar o ouvinte, tendo sucesso apenas na primeira opção.