Kandinsky: As cores do gigante

onwhite

No Branco, 1920

Paula F. Vermeersch, docente em História da Arte e da Arquitetura no FCT/Unesp

Exposta no ano passado no Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Brasília, nos Centros Culturais do Banco do Brasil, a mostra “Kandinsky: Tudo começa num ponto” trouxe, para o público brasileiro, a primeira oportunidade de ver não só quase toda a trajetória do gigante Wassily Kandinsky (1866-1944), mas também dos artistas ucranianos, russos e alemães que circularam nas vanguardas do início do século XX, além de artefatos sacros e cotidianos, que atestam a ligação destes artistas modernos com tradições figurativas ancestrais.

Percorrer a exposição foi, de certa forma, ser apresentado ao grande acervo do Museu Estatal de São Petersburgo, de difícil acesso, e coleções particulares de vários países. Ver um Kandinsky desconhecido pela maioria- um Kandinsky figurativo, paisagista, e criador de narrativas oníricas.

Talvez muitos que foram na exposição se surpreenderam com estes Kandinsky- aparentemente tão distantes dos mais célebres do inventor da Arte Abstrata, do professor da Bauhaus e do escritor de textos tão belos quanto difíceis como “O espiritual na Arte.”

redchurch
Igreja Vermelha, 1901-1903

A mostra dividia-se em cinco blocos: “Kandinsky e as raízes de sua obra em relação com a cultura popular e o folclore russo” e “Kandinsky e o universo espiritual do xamanismo no Norte da Rússia”, onde as telas de juventude do artista conviviam com ícones do século XIII, peças de madeira trabalhada como cadeiras e artefatos da vida camponesa. Na seqüência, “Kandinsky na Alemanha e as experiências no grupo Der Blaue Reiter, vida em Murnau” trazia o Kandinsky paisagista do período alemão- a explosão de cores próxima de Van Gogh, Matisse e os chamados expressionistas, mas totalmente original e visualmente inesquecível.

“Diálogo entre música e pintura: a amizade entre Kandinsky e Schonberg”  nos explicava os caminhos da Abstração- quando o paisagista dedicou-se a pintar as suas paisagens interiores, o seu sentimento diante de peças musicais, os experimentos em traduzir em linhas, cores, áreas e pontos os ritmos e cadências dos mais variados estilos musicais. Por último, “Caminhos abertos pela abstração: Kandinsky e seus contemporâneos” explicitava os múltiplos entendimentos da Abstração- as diferenças não residem apenas nas caracterizações de estilos individuais, mas de propostas concretas- do que a Abstração parte? Do que o artista trata, ou não? O que significam as cores?.

É possível, a partir da mostra do CCBB, repensar, portanto, nosso conceito de vanguarda. O termo, retirado da linguagem militar (avant-garde, a linha de frente de um exército), foi utilizado a partir do século XIX para designar os artistas que estão “à frente” do gosto médio de sua época, da compreensão do público e do aplauso imediato da crítica. Serviu tanto para o ataque quanto para a defesa dos grupos de artistas que uniam-se ao redor de ideias, propostas formais e posições políticas.

stgeorge
São Jorge I, 1911

Nas duas primeiras décadas do século XX, divididos nestes grupos, os artistas empreenderam verdadeiras batalhas por uma nova compreensão de Arte, uma reconfiguração do pensamento estético- um dos “generais” mais aguerridos foi justamente Kandinsky. Uma primeira aproximação nos leva a crer que um artista de vanguarda é aquele que rompe definitivamente com a tradição que lhe é anterior; em atos de rebeldia e insubordinação, o vanguardista quebraria com os códigos não só de gosto, mas de construção formal, da estrutura interna da obra. Nesse sentido, quem mais se encaixaria nesta definição, que não o responsável pela quebra do figurativismo ocidental?

Mas não é só isso. E para além disso- apareceu, para o público brasileiro, a força de um artista que partia, sim, do que veio antes dele- não necessariamente das obras que estavam em museus, não dos mármores clássicos, mas dos baús de guardados das avós camponesas, nas insondáveis profundezas da Russa czarista. Um artista que quebrou, deliberadamente, com a divisão acadêmica da Pintura e da Música- para criar outra, perene e magnífica em sua precisão.  Que as belezas do gigante nos façam refletir sobre nossas visões mais imediatas da História da Arte, no nosso país.

Deixe uma resposta