Laís David
Quando Fiona Apple subiu no palco do Video Music Awards para aceitar o prêmio de Melhor Nova Artista, em 1997, ela não tinha noção do impacto cultural de seu discurso. Se baseando na sua inspiração de infância, Maya Angelou, ela utilizou seu ínfimo espaço na premiação para professar uma queixa contra a indústria da música. “Esse mundo é uma porcaria. Você não deveria modelar a sua vida em torno do que você acha que nós achamos que é legal”. Mais de duas décadas depois do lançamento do álbum premiado naquela noite, Fiona Apple ainda nada contra a corrente com destreza.
Sua rápida ascensão soava como um fruto do acaso: sua demo inicial foi divulgada para o publicista Andrew Slater, que, impressionado com a qualidade das composições, a direcionou rapidamente para um contrato com a Sony Music. Em menos de dois anos, o disco estava pronto: recheado de angústia e arrependimento, Tidal foi a porta de entrada aos anos traumáticos da adolescência de Apple.
Vítima de um estupro aos 12 anos de idade, a artista passou a maior parte da sua juventude perdida entre um transtorno obsessivo-compulsivo, a ansiedade e a depressão. Foi com seu extraordinário lirismo que Apple conseguiu externalizar esse emaranhado de sentimentos em forma de arte. Ela soube traduzir sua dor de forma enigmática, como reverbera amargamente em The Child Is Gone: “Sou uma estranha a mim mesma/Então não me procure, estou muito longe“.
O resultado dessa mistura de emoções foi melhor que o imaginado. Com apenas 19 anos, Apple conseguiu produzir uma obra completa, recheada de influências certeiras de jazz, piano rock e pop. Sucesso comercial e de crítica, o álbum ainda lhe rendeu um merecido Grammy de Melhor Performance de Rock Feminina.
O disco não foi um sucesso imediato. Shadowboxer, primeiro gostinho do LP, não chegou ao sucesso dos singles posteriores, mas detalhou com sagacidade o melhor que Fiona poderia oferecer. O piano rock sensual precedeu a canção que colocaria a cantora na capa de milhares de revistas no fim dos anos 90: a viciante Criminal.
Para o ano que colocou Alanis Morissette nos charts com Jagged Little Pill, o sucesso da canção foi admirável, mas não inesperado. Sexualmente carregada, Criminal representava muito bem o heroin chic noventista e catapultou Fiona para o topo das paradas em todo mundo. Com uma estética crua e irreverente, a faixa foi um antídoto ao pop coloridíssimo que entrava em ascensão no final da década, principalmente pela sua astuta frase de abertura: “Eu fui uma garota muito, muito má/Fui descuidada com um homem delicado”.
Essa sinceridade devastadora angariou a atenção do público da época. Como uma espiral descendente, Tidal descasca as camadas da personalidade de Apple ao passar de cada faixa, e, nessa viagem, ela chega ao ponto mais doloroso com Sullen Girl. Retratando o impacto da violência sexual que sofreu no passado, Fiona confessa: “É por isso que me chamam de garota mal-humorada?/Eles não sabem como eu costumava navegar no mar profundo e tranquilo/Mas ele me lavou até a praia/e pegou minha pérola”.
Never Is A Promise é igualmente brutal. Completamente entorpecente, a canção é, talvez, a melhor balada da cantora. Ela também sabe utilizar muito bem a própria sensualidade, seja na confessional Slow Like Honey ou na brasileiríssima The First Taste, que traz infusões tropicais ao jazz costumeiro de Apple.
Além de devastador, Tidal também tem certos respingos de ironia. Nenhuma canção conseguiria capturar a personalidade desafiadora de Apple como a faixa de abertura, Sleep To Dream. Inteligentíssima, a cantora parece desafiar o ouvinte com sua acidez provocativa: “Você fala que o amor é um inferno que você não suporta/Eu digo, me devolva o meu e vai para lá, eu não ligo”.
A obra trava uma batalha curiosa entre a sensualidade, a dor e a inocência. A originalidade atemporal das dez faixas eleva o álbum de estreia de Fiona Apple a um nível de qualidade extraordinário. Tidal nunca chegou perto do que ela chegaria a produzir nos próximos anos, mas o disco marcou seu espaço dentro da indústria da Música. Uma coisa é clara: os anos noventa não seriam os mesmos sem ele.