Revenge: a história certa nas mãos erradas

A concepção de vingança na série e a conexão com a obra O Conde de Monte Cristo

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Matteus Corti

[Esta crítica contém spoilers!]

William Shakespeare já em sua mais célebre frase buscava distinguir as diferenças entre justiça e vingança, explicando a tênue linha que divide a prática a justiça e da vingança: o amor. Nas produções pós-modernas que retratam a temática da vingança, temos a construção básica de uma série de fatores de injustiça e sofrimento que justificam a atenuação de crimes e a consequente sede de fazer justiça com as próprias mãos.

Injustiça essa que, segundo Aristóteles não deve ser aceita por qualquer homem que tenha em si o mínimo de virtude. O sábio jamais deveria se aquietar quando exposto à injustiça e daí sentimentos como ira, ódio e rancor passam a ser mais presentes na vida de personagens de produções com a vingança em sua linha central. Revenge apresenta-nos um mundo propício para a discussão das relações entre vingança e justiça, devendo ser analisada com a profundidade temática que se propõe a enfrentar.

 

Os meandros de Revenge

Amanda Clarke ainda criança viu seu pai David Clarke sendo julgado por terrorismo, acusado de ser responsável por conspirar para a derrubada de um avião e a morte de centenas de pessoas e depois de preso pelo crime,  ser assassinado na cadeia. Após alguns anos de internação em um reformatório, Amanda Clarke volta ao aos Hamptons, bairro nobre e local de sua infância sob a identidade secreta de Emily Thorne.

A personagem recebe de um antigo amigo de seu pai uma caixa com as principais pistas que a levariam às pessoas responsáveis por sua condenação e assassinato e desenvolve um plano de vingança a partir daí. O foco principal é a família vizinha e dona da empresa na qual David era funcionário: os Grayson. Tendo como alvo a ex-amante de seu pai e matriarca da família, Victoria Grayson.

O primeiro episódio de Revenge foi ao ar em setembro de 2011 e devido ao sucesso do piloto, a ABC encomendou mais uma temporada inteira. Após quatro temporadas de exibição, a série foi cancelada e seu episódio final foi ao ar em 10 de maio de 2015, com uma alta audiência nos Estados Unidos.

Revenge nunca foi a série mais perfeita produzida pela TV americana. Longe de ser classificada entre as que levam diversos Emmy’s ou as que possuem louros das críticas especializadas em tramas televisivas, a série está mais entre as nossas tão desastrosas mas não menos queridas listas de “guilty pleasure”. As falhas de roteiro, de direção e de atuação fizeram com que a história se tornasse apenas mais um “novelão” da TV americana sem potencial nenhum para aprofundar conceitos humanos mais específicos.

Arrisco dizer que o criador Mike Kelley projetou uma temporada ou, no máximo duas para um bom desenvolvimento da trama. Isso porque a primeira temporada é estranhamente boa. As motivações de Emily Thorne são bem apresentadas e construídas. O arco da personagem aponta para uma grande variedade de emoções durante a temporada, e entrega o que promete.

É preciso destacar o ponto alto de toda a trama: os figurinos. Sim, os figurinos. De alta classe e com cores sempre chamativas, elegantes e que remetem à burguesia norte-americana, as roupas dos personagens são sempre destaque nas análises semióticas da série. No núcleo principal, em Hampton’s, as mulheres estão frequentemente vestidas de vestidos e saias da mais alta costura, de salto alto e cabelo perfeito, enquanto em locais mais afastados e periféricos a vestimenta costuma seguir a ordem do mundo natural.

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Victoria Grayson, por exemplo, raramente é vista sem os impecáveis vestidos e os saltos elevados, demonstrando as características de poder e superioridade que a personagem sempre procura transmitir. Nolan Ross, o melhor amigo de Emily, prefere tons chamativos e cortes extravagantes, mostrando o lado ousado e alternativo.

A morte precoce de alguns personagens entre a primeira e a segunda temporadas prometia fazer da série uma produção qualificada no sentido de desapego e construção de uma narrativa forte e independente de carismas e simpatia do público com os personagens. Na primeira temporada, a produção promete entregar uma história compacta, objetiva e interessante, tendo sempre um ponto de virada no final dos episódios e um mistério a ser resolvido durante os próximos.

A partir da segunda, há uma clara intervenção político-econômica da produtora e transmissora da obra para alongar uma trama que não tinha mais para onde correr. Uma história que foi criada para ser contada em no máximo duas temporadas foi estendida para quatro, gerando falhas de roteiro, de direção e colocando o elemento artístico-narrativo de lado, em detrimento das escolhas comerciais que até ali estavam rendendo.

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Os diretores trouxeram à tona personagens que não tinham como contribuir para a modificação do enredo, acrescentar elementos surpresa que causavam desconforto ao público mais aficionado e mudar elementos centrais para a consolidação da narrativa, como as motivações iniciais apresentadas e a justificação de determinadas atitudes da protagonista.

Todas essas escolhas da produção culminaram no empobrecimento da trama do ponto de vista lógico e narrativo, ficando diversos pontos a serem resolvidos e diversos personagens esquecidos. Cenas desnecessárias passaram a se tornar regra e o que deveria ser uma nobre narração da história de busca da vingança de uma filha que perdeu o pai por interesses político-econômicos numa sociedade hipócrita tornou-se a narrativa da “birra” de uma criança órfã de motivações maleáveis e inconstantes.

 

As relações com a obra O Conde de Monte Cristo

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A trama é declaradamente baseada no romance homônimo francês “O Conde de Monte Cristo” escrito por Alexandre Dumas com colaboração de Auguste Maquet e publicado em formato folhetim entre 1844 e 1846. A obra de Dumas ganhou cerca de dez versões cinematográficas, sendo a mais recente com lançamento no ano de 2002, com direção de Kevin Reynolds e estrelado por Jim Caviezel, Guy Pearce, Dagmara Dominczyk e Richard Harris.

A história de Dumas é referência quando o assunto é vingança, um dos conceitos mais presentes nas situações cotidianas da humanidade. Em ambas as obras, a personagem principal é apresentada como inocente e livre de amarras, dócil, amorosa e essencialmente boa até que alguma espécie de traição, injustiça ou tragédia as muda completamente e as faz embarcar numa jornada de duas covas, como diria Confúcio.

As tramas são igualmente envolventes e embora Revenge possua seus altos e baixos principalmente entre a terceira e quarta temporadas, a série consegue prender o espectador que não se atém tanto a questões técnico-estruturais, mas em algum momento se identifica com os anseios dos protagonistas.

Tanto Emily Thorne quanto o Conde de Monte Cristo se utilizam de disfarces aristocráticos para atingirem seus anseios. Ambos passam por um período turbulento e complexo de humilhação e agressões tanto físicas quanto psicológicas que criam nos personagens e, consequentemente nos espectadores, uma espécie de “casca” imune a qualquer possível arrependimento que tenham em relação aos atos que deverão se seguir no decorrer da história.

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Emily é treinada por um samurai japonês nas artes marciais. Sabe lutar, se defender, atirar e desarmar. Sabe como se portar perante a burguesia do Hamptons e aprendeu bem a usar o vocabulário. O Conde foi igualmente treinado. Antes pobre e dependente, agora ele conhece a esgrima e a luta de espadas, a história, a geografia e a economia, ensinadas pelo velho padre companheiro de prisão. A infiltração no território do inimigo através da caracterização de elementos visuais e comportamentais é um elemento recorrente em tramas que possuem a vingança como teor central.

Nessas tramas, também é necessária a utilização do artifício de roteiro que humaniza os protagonistas que muitas vezes tem atitudes impopulares demais para o grande público. O principal artifício é a construção de companheiros próximos aos protagonistas que conhecem seus dilemas e que partilham de suas dores, neles são concentrados os erros, os defeitos, as perdas e, muitas vezes, as mortes. Em Revenge, Nolan Ross e Aiden Mathis cumprem esse papel, enquanto em O Conde de Monte Cristo, o ex-escravo salvo por Edmond fica com essa função.

Após voltarem para o “território do inimigo” e conseguirem jogar com os demais personagens e finalmente alcançarem a sua tão procurada vingança, há a reconciliação com a moral absoluta e a redenção dos protagonistas. Geralmente do meio para o fim das produções ocorre o período de vingança propriamente dita e a consequente absolvição dos crimes por eles cometidos por um chamado “bem maior”.

Nota-se que em nenhum dos casos os protagonistas são apresentados como heróis perfeitos, moralmente íntegros e com caráter impecável e não passível de erros. Muito pelo contrário, nas duas tramas os protagonistas assumem o papel de criminosos e justiceiros, buscando fazer seus inimigos pagarem pelo que contra eles foi cometido através de prisões, assassinatos, crimes cibernéticos ou falsidade ideológica e espionagem.

Se em O Conde de Monte Cristo, Edmond Dantès finalmente fica com sua amada Mercedès e assume e conhece seu filho, em Revenge, Emily Thorne é reconhecida como uma filha machucada e injustiçada que só buscava esclarecer a verdade sobre seu pai e provar sua inocência. Emily descobre que seu pai continuava vivo o tempo todo e consegue se livrar dos Grayson e de todo o monopólio que estes articularam contra as informações.

No momento da absolvição, os produtores e diretores das obras devem, então, provar ao público o porquê de todos aqueles acontecimentos terem se desenrolado e se tornado realidade. É aí que vemos a justificação legal para os crimes então cometidos e o espectador se vê diante de um quadro em que deve simpatizar com um dos dois lados: o que praticou o mal por praticar ou o lado que praticou atos ruins em decorrência de seu sofrimento e opressão.

A segunda opção é obviamente a mais escolhida e justifica o sucesso de produções do gênero.

 

Todas as temporadas de Revenge estão disponíveis na Netflix.

 

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