Sem Volta para Casa, o Homem-Aranha busca refúgio em si mesmo

Cena do filme Homem-Aranha: Sem Volta para Casa. A cena mostra o Homem-Aranha, um jovem branco, se jogando para pegar uma bolha laranja e verde. Ele usa o uniforme vermelho, com detalhes em preto e o cenário ao seu redor é de escombros e destruição.
Leia com cautela, pois o texto abaixo contém spoilers graves dos acontecimentos centrais de Homem-Aranha: Sem Volta para Casa (Foto: Sony/Marvel)

Vitor Evangelista

O que significa ser um super-herói? O senso de justiça, o dever a ser cumprido e o regozijo em fazer o bem podem estar na ficha técnica de qualquer mascarado que pirueteia pelas vielas escuras de uma cidade recheada de crimes. O Homem-Aranha, mais do que qualquer outro advento quadrinhesco, ganha novas camadas quando analisamos suas características mais específicas: ele é um adolescente passando pela puberdade, alguém efervescendo e encontrando seu lugar no mundo, em adição a picada do aracnídeo e o combo de grandes responsabilidades que chegam junto dos grandes poderes. 

Em 2018, Homem-Aranha no Aranhaverso soube destacar as particularidades do personagem-título com astúcia, deixando claro que, além do trauma de perder alguém, ser o Cabeça de Teia está muito ligado a ideia de sacrificar seu próprio espaço pessoal em prol de um parente, um amigo ou mesmo uma metrópole. Em 2021, chegou a vez do Peter Parker de carne e osso (Tom Holland) perder o chão e se firmar como o Amigão da Vizinhança que tanto lhe cobraram de ser desde que assumiu o manto em um aeroporto alemão

A narrativa de Homem-Aranha: Sem Volta para Casa (Spider-Man: No Way Home, no original) segue os eventos de Longe de Casa, quando um já derrotado Mysterio (Jake Gyllenhaal) dá a cartada de mestre de seu plano maléfico e revela ao mundo a identidade secreta do herói. Em meio ao caos, Peter resgata uma zonza MJ (Zendaya) do linchamento público e, reunido com Ned (Jacob Batalon), May (Marisa Tomei) e Happy (Jon Favreau), o time Aranha precisa decidir os próximos passos.

Cena do filme Homem-Aranha: Sem Volta para Casa. A cena mostra Peter Parker andando em meio a uma multidão, que segura cartazes e se aglomera ao seu redor. Está de dia e a câmera foca de perto no rosto do homem jovem e branco, de cabelos castanhos e cabeça abaixada. Ao fundo, vemos seu amigo Ned, um jovem gordo e com ascendência filipina, que aparece desfocado.
Embora apareça brevemente, Betty (Angourie Rice) rouba a cena, dizendo ‘vá pegá-los, Tigrão’, bordão cunhado por Mary Jane nas histórias em quadrinho [Foto: Sony/Marvel]
Percebendo como o papel de vigilante destrói não apenas seu futuro, mas também o dos amigos (algo inerente às narrativas anteriores de Parker, desde o namoro falido com Mary Jane nos filmes de Sam Raimi até a morte de Gwen Stacy nos de Marc Webb), o Peter Parker do Universo Cinematográfico da Marvel bate à porta do adulto responsável mais próximo. Conversa vai, conversa vem, Wong (Benedict Wong) levanta premonições, e Stephen Strange (Benedict Cumberbatch) ferozmente as ignora, fazendo com que o feitiço mais importante do Multiverso dê errado.

O Doutor Estranho se lamenta, sem entender que diabos ocorreu. Ele, agora sem o título de Mago Supremo depois de morrer no estalo de Thanos e tampouco sem o poder da Joia do Tempo, assume o papel de carrasco do Aranha, ditando o plano de resgate para que figuras históricas da mitologia de herói possam ser detidas e não causem mais dano à Nova Iorque lavada e sem cor da Marvel. Acontece que, na hora de conjurar a magia que faria boa parte do mundo esquecer que Peter Parker é o Teioso, bolas foram invertidas e as pessoas que tem conhecimento dessa identidade, independente de que mundo moram, estão sendo puxadas para essa Terra.

Assim, retornam 5 grandes antagonistas das sagas anteriores do personagem. Resgatando um vilão de cada produção solo, o diretor Jon Watts começa a movimentar seus peões. Da obra de Sam Raimi, retornam o Duende Verde (Willem Dafoe), o Doutor Octopus (Alfred Molina) e o Homem-Areia (Thomas Haden Church); das aventuras espetaculares, os malvados do pedaço são o Lagarto (Rhys Ifans) e o Electro (Jamie Foxx). Com o circo armado, Parker e Watts precisam, além de pingar os is de uma trilogia que chega ao fim, satisfazer os fãs mais fervorosos do momento.

Cena do filme Homem-Aranha: Sem Volta para Casa. A cena mostra o Doutor Octopus preso em uma jaula de vidro. O ambiente é escuro e o homem branco, idoso e de cabelos pretos, olha desconfiado para a frente. Atrás dele, vemos dois dos braços mecânicos.
Tobey Maguire, o Aranha original, se saúda na nostalgia, mas seu jeito quadradão não abre espaço para a ginga que as variantes do herói esbanjam (Foto: Sony/Marvel)

Afinal, com a abertura do Multiverso (que começou em WandaVision e continuou em Loki), as possibilidades são infinitas. É interessante, entretanto, que na exploração do conceito, o produtor executivo Kevin Feige opte por domar leões conhecidos antes de partir para apresentações inéditas. Se o Mercúrio de Evan Peters do começo de 2021 não passava de uma piada sem graça, o retorno dos eternizados Tobey Maguire e Andrew Garfield é a recompensa que a Casa de Ideias germina desde a concepção dos eventos pós-Thanos. Considerando que ir ao Cinema nesses anos de pandemia se tornou um acontecimento raro, filmes-evento como o terceiro Aranha de Holland não se provam apenas como uma retomada às salas, mas também um gigante alerta sobre a dominância dos arrasa-quarteirões nas bilheterias e nos mercados menores.

Quando foi lançado, Homem-Aranha: Sem Volta para Casa dominou as sessões, chegando a acabar com exibições de longas menos populares, como o Amor, Sublime Amor, de Steven Spielberg, King Richard: Criando Campeãs e até Marighella, de Wagner Moura, que sofreram com orçamentos grandes e um retorno financeiro que não se mostrou à altura. Todos os anos, em principal quando a Marvel reúne seus bonecos de ação em obras derradeiras, a discussão sobre monopólio cultural é acendida e apagada. 

A demanda é alta, é claro, mas se apenas um filme é exibido em uma porção de salas, qual a escolha do público senão prestigiar e assim inflar a bilheteria bilionária? Enquanto o Brasil não fizer nada para regulamentar questões do gênero, a vitrola continuará riscada, repetindo a mesma nota de pesar pelo conteúdo nacional, mas sem efetivamente preferenciá-lo ao lado da Lei. Dito isso, o sucesso mundial do Spider-Man transformou o longa na maior arrecadação da pandemia, além de aumentar um falatório em relação a uma possível nomeação ao Oscar. Mas isso são outros quinhentos.

Cena do filme Homem-Aranha: Sem Volta para Casa. A cena mostra os 3 Homens-Aranha, parados em suas poses características, no topo da Estátua da Liberdade. À esquerda, vemos a versão vivida por Tobey Maguire, ao meio vemos Tom Holland, e à direita está Andrew Garfield, cada qual usando seu uniforme característico em vermelho, com detalhes em branco, azul e preto.
Depois de estrelar Mainstream, Os Olhos de Tammy Faye e ser indicado aos principais prêmios por tick, tick… BOOM!, com Homem-Aranha 3 Andrew Garfield encerra um dos anos mais espetaculares de sua carreira (Foto: Sony/Marvel)

De volta ao filme, é impressionante notar o fator sorte na direção de Jon Watts. Isto é, depois de Sam Raimi revitalizar o gênero dos heróis (ao lado de Blade e dos X-Men) no início dos anos 2000, e de Marc Webb não permitir que Garfield fosse parte de narrativas empolgantes (e mesmo assim cair no gosto do público), o cineasta da Marvel tem todas as cartas à mostra para celebrar o Cinema do Aranha, fechar ciclos importantes dentro do MCU e ainda sanar a inquietude de quem implorava por um Parker independente, sem as facilitações cedidas pelo Homem de Ferro, Nick Fury e Doutor Estranho.

Por conta disso, momentos como a introdução de Matt Murdock (Charlie Cox) são tanto ou até mais empolgantes que as lutas de Holland com os vilões. A surpresa, rápida e eficiente, de enfim enxergar o Demolidor ser convidado à festa suprime qualquer ação de computação gráfica que tem tesão em destruir concreto e capotar veículos de luxo. Quando atuou em 2004, Alfred Molina era auxiliado por humanos que controlavam seus quatro amedrontadores braços, dando substância à concepção de um vilão que nasceu, em telas, da mente do diretor que brincava com A Morte do Demônio nos anos 80.

Dessa vez, a movimentação do Doutor Octopus não passa perigo algum, por mais que o carisma e a entrega de Molina segurem o tom ameaçador que o personagem sempre exibiu. O contrário vale para o Duende Verde, que muito se beneficia da expressividade imortal de Willem Dafoe. O ator se manteve longe do Cinema mais pop nos últimos anos (apenas montando tubarões no Oceano), alternando sua rotina entre ocupar faróis imundos, motéis coloridos e manicômios artísticos, mas faz de seu último ato como Norman Osborn um espetáculo de loucura e alucinação.

Cena do filme Homem-Aranha: Sem Volta para Casa. A cena mostra um GIF com a câmera próxima do rosto dos 3 Homens-Aranha. Está de noite e os três estão sem máscara, olhando com expressão de preocupação para a frente.
Venom: Tempo de Carnificina traz o simbionte de Tom Hardy para o MCU mas, depois de uma breve bebedeira, o anti-herói é mandado de volta para casa, deixando para trás o que parece ser o início de um arco importante para o Aranha do MCU (GIF: Sony/Marvel)

A decisão de abdicar da característica e aterrorizante máscara verde pode doer o coração de quem borrava as calças quando criança só de ouvir a risada e o planador à distância, mas a síndrome Marvel de estampar o rosto dos atores enriquece o Duende, um magnata falido e doentio, sofrendo de distúrbio de personalidades. As trocas entre Dafoe e Holland são as melhores que o jovem ator já teve com qualquer antagonista, e, por conta das nuances do vilão, cada cena oferece múltiplos graus de emoção e tensão, afinal, nem a trilha de Michael Giacchino dá conta de modular as viradas do texto, escrito por Chris McKenna e Erik Sommers.

A música do compositor sabe complementar a direção de Watts, partindo da abertura até a canção que embala os créditos. Aliado à potência de reunir 3 gerações do aracnídeo, o filme se sustenta pela emoção. Afinal, a iminente e já anunciada ponte para a trama do segundo Doutor Estranho impossibilita Sem Volta para Casa de voar alto demais. Mesmo a notícia de uma nova trilogia, desta vez ambientada na faculdade, apenas aterra esse capítulo três como um inevitável acerto de contas da Marvel com os fãs.

Cena do filme Homem-Aranha: Sem Volta para Casa. A cena mostra o Duende Verde, usando a armadura completa, com a máscara verde e olhos amarelos, voando acima de uma ponte. Ele segura uma bola laranja e ao fundo vemos fumaça cinza.
Com o reuso de materiais antigos, os intérpretes do Lagarto e do Homem-Areia não estiveram no set para gravar cenas novas; enquanto isso, Willem Dafoe só aceitou retornar ao papel de Duende Verde se pudesse fazer ele mesmo as sequências de ação (Foto: Sony/Marvel)

Os comentários mais autorais da obra perdem-se no emaranhado de referências, mas não devem passar totalmente despercebidos. Quando reescala J.K. Simmons para o papel de um psicopata da mídia, Jon Watts discursa a respeito da proliferação de notícias falsas e do valor mercadológico da indústria de sensacionalismo. Não à toa, o J. Jonah Jameson da Marvel é um mix de José Luiz Datena com Luiz Bacci de bigodes, partindo de um cenário de porão mal iluminado quando dá o furo da identidade do Aranha, até conseguir orçamento para financiar helicópteros sobrevoando a vida do menino como urubus famintos.

Detalhes desse gênero se camuflam por toda a narrativa do filme. A discussão que permeia o antipunitivismo pode ser mais discutida no campo extra-filme, assim como a escolha de situar o embate derradeiro entre Aranha e Duende por cima dos ideais de paz derrotados no escudo caído do Capitão América. E não é como se o Cinema de herói não encontrasse espaço para discussões mais aprofundadas, mas visto que os Eternos de Chloé Zhao carregam o fardo de filme com a recepção menos positiva do MCU por não se apoiar no já desmiolado e deturpado conceito de fan service (quando a obra atende pedidos diretos de quem a consome), não é estranho que a empresa por trás do império tenha apostado todas as fichas na nostalgia e no apreço pelo que já é passado.

Cena do filme Homem-Aranha: Sem Volta para Casa. A cena mostra o Doutor Estranho conjurando um feitiço que dá início ao filme. Ele é branco, adulto, tem cabelos escuros com mechas grisalhas nas laterais e está concentrado, olhando para baixo. Tanto ao seu redor quanto em suas mãos, vemos círculos e linhas laranjas de luz.
Depois de selar a trilogia escolar do Homem-Aranha, Jon Watts tem a missão de dirigir o novo filme do Quarteto Fantástico, ainda sem data marcada ou elenco anunciado (Foto: Sony/Marvel)

E, falando dos dois grandes monumentos históricos de Sem Volta para Casa, Tobey Maguire e Andrew Garfield brilham no maior filme de 2021. Os Aranhas experientes são um complemento à jornada de Tom Holland no papel, formando a base para que, sem um lar físico ou emocional, ele possa seguir em frente. O conceito de moradia que permeia a versão da Marvel para o personagem culmina no medo mais genuíno do homem, o de se encontrar sem um norte, sem uma casa para voltar. Para se tornar o Spider-Man que Stan Lee e Steve Ditko criaram em 1962, Tom Holland precisava não apenas ir ao baile de formatura com a filha do Abutre, virar um Vingador, lutar contra um alien roxo e ter sua identidade secreta revelada. Ele precisava perder o tio Ben.

Mas não existe Tio Ben na Marvel, nunca existiu. Como então rasgar o coração com oito patas do jovem? Como destruir seus sonhos e dilacerar sua alma? Voltando à origem da concepção moderna do Teioso nos cinemas. Não há inimigo mais terrível que o Duende Verde, não há vítima mais letal que a Tia May, não há como esse caminho ser desviado. Com grandes poderes, vem grandes responsabilidades, já disseram três parentes, agora falecidos. E eles falaram a verdade. A juventude e a inocência de Holland foram expurgadas de seu corpo cansado, machucado e dolorido.

Se nem MJ nem Ned sequer se lembrarão do nerd do Queens, o que lhe resta para continuar se pendurando pelos prédios da Grande Maçã, ele questiona seus mentores-irmãos. Nem Maguire nem Garfield têm o gabarito em mãos, mas suas experiências de perda, luto e sobrevivência oferecem suficiente compaixão e esperança para Holland. O amanhã pode ser cinzento, mas ele deve continuar na jornada. Sem namorada, sem melhor amigo, sem tia, sem Stark e sem Estranho. Sem volta para casa, sem emprego e sem formatura. Sem todos os mimos que lhe privilegiavam, mas com grandes responsabilidades nas costas. Bem-vindo, Peter Parker, será ótimo te conhecer ainda mais.

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