Do Not Split: a liberdade de expressão agoniza em Hong Kong

Cena do curta Do Not Split. Ao centro, vemos um grupo de policiais prendendo um manifestante honconguês. O manifestante está sendo segurado por um homem de boné com um mata leão. Pessoas em volta estão gravando a cena utilizando celulares.
Do Not Split está indicado ao Oscar 2021 na categoria Melhor Documentário em Curta-Metragem (Foto: Field of Vision)

Jho Brunhara

Poder e território estão atrelados desde que o primeiro homem cercou um pedaço de terra e chamou de seu. Em meu texto mais recente publicado no Persona, discuti sobre os problemas que o nacionalismo gera. Coincidentemente, Do Not Split (不割席) é mais uma produção que retrata perfeitamente os perigos de nações soberanas e minorias execradas. Nesse documentário em forma de curta-metragem dirigido pelo norueguês Anders Hammer e produzido pela americana Charlotte Cook, acompanhamos os protestos de Hong Kong de 2019 e 2020 contra a tentativa de criação de uma Lei de Extradição entre a ilha e a China continental, que ameaçaria a autonomia e liberdade jurídica honconguesa. 

Eventualmente, as manifestações evoluíram para o lema “cinco demandas, nenhuma a menos”: retirar completamente o projeto da Lei de Extradição; não caracterizar os protestos como motins; retirar acusações contra manifestantes que foram presos; organizar uma comissão independente para investigar abuso de força policial; e a renúncia de Carrie Lam, atual chefe executiva, e a implementação de um sufrágio universal para eleição do Conselho Legislativo e chefe executivo.

Cena do curta Do Not Split. Em meio a fumaça de gás lacrimogêneo, podemos ver vários manifestantes pró-Hong Kong segurando guarda chuvas. Eles estão em uma rua, é noite, e há um edifício comercial ao lado direito.
“Liberate Hong Kong, revolution of our times” (Foto: Field of Vision)

Contexto rápido da situação entre Hong Kong e a China continental: a ilha era parte da Dinastia Qing até 1842, quando foi forçadamente entregue ao Império Britânico através do Tratado de Nanquim. Em 1972, a República Popular da China solicitou que Hong Kong fosse removida da lista da ONU de territórios não autônomos, impedindo que tivesse o direito de declarar independência. Em 1984, foi estabelecido um novo acordo entre Reino Unido e China: a soberania de Hong Kong seria devolvida ao território chinês, processo que foi concluído em 1997. Entre os termos para a ‘devolução’, os principais garantiam que a ilha mantivesse a diferença de seus sistemas econômico, político e jurídico após a transferência, e o desenvolvimento futuro de um governo democrático. Também foi criada uma semi-constituição, a Lei Básica de Hong Kong

Nos últimos anos, o descontentamento dos honcongueses vem das diversas investidas do Partido Comunista Chinês, que representa a China continental. Além da retórica contra o sistema político e jurídico da ilha, há uma tentativa constante de desconsiderar as garantias democráticas da Lei Básica. A distância entre os dois lados aumenta também por diferenças culturais: Hong Kong não foi igualmente influenciada pela revolução político-ideológica de Mao Tsé-Tung, e a ilha tem como língua predominante o cantonês, em contraponto ao mandarim na China continental. 

Cena do curta Do Not Split. Vemos três jovens em movimento, de costas para a câmera. A primeira, à esquerda, é uma mulher. Não podemos ver seu rosto, mas sua pele é clara, seu cabelo é comprido e preto e está preso em um rabo de cavalo. Ela usa uma blusa branca e uma saia preta, assim como tênis branco e uma faixa branca na perna direita. Ao seu lado, um homem empurra um carrinho de supermercado. Ele está todo de preto, com uma mochila azul nas costas e proteções nos cotovelos. Dentro do carrinho, há uma caixa branca de papelão. À direita, um último homem também corre. Ele usa capacete, máscara preta, blusa e calça pretas e um cassetete nas costas. Os três estão em uma rua, com lojas ao fundo.
Apesar de estar o tempo todo no núcleo do conflito em Hong Kong, o filme de Hammer e Cook, que está disponível de graça no YouTube, é uma produção americana-norueguesa e traz uma visão estrangeira ao conflito (Foto: Field of Vision)

Então, chegamos em Do Not Split. O documentário de Anders Hammer está o tempo todo no olho do conflito, às vezes até perto demais. Ao longo de um ano de gravação, somos colocados dentro das passeatas, como a de 16 de junho, que reuniu duas milhões de pessoas segundo a Civil Human Rights Front. Estamos na linha de frente, ao lado de manifestantes enquanto preparam coquetéis molotov, enquanto tossem pelo gás lacrimogêneo e correm das balas de borracha (ou balas reais) utilizadas pelos soldados chineses. Ficamos presos dentro da Universidade Chinesa de Hong Kong durante um cerco policial, e dormimos no chão da pista de atletismo. Nos escondemos dentro de edifícios comerciais, protegidos pelos locais. Assistimos dezenas, centenas, milhares de prisões e brutal violência da polícia. Sonhamos com uma resolução democrática, e infelizmente, tememos, junto aos ativistas e civis, a evolução da ameaça contra as liberdades políticas de Hong Kong.

As imagens de Hammer são espetaculares, inspiradoras e dolorosas, e a narrativa e a importância política não ficam atrás. Não à toa a produção está indicada ao Oscar de Melhor Documentário em Curta-Metragem, e já é a terceira nomeação da produtora Field of Vision. Infelizmente, o fato de Do Not Split estar concorrendo ao Oscar fez com que autoridades chinesas proibissem a exibição da premiação no dia 25 de abril em todo o território. A decisão da China só dá respaldo ainda maior para o curta, que acaba também entrando na luta contra a censura e se estabelecendo como resistência.

Fotografia de um protesto na cidade de Hong Kong. Em primeiro plano vemos um manifestante usando uma máscara do Guy Fawkes. Ele segura uma bandeira com os escritos FREE HONG KONG - REVOLUTION NOW. Ao fundo, podemos ver uma rua com milhares de manifestantes, preenchida de calçada a calçada. Aos lados, diversos prédios altos e fachadas de lojas.
A China usou a pandemia como justificativa para adiar as eleições legislativas de Hong Kong, nas quais a oposição tinha chances de vencer em maioria (Foto: Danish Siddiqui/Reuters)

Em 30 de junho de 2020, o Congresso Nacional do Povo chinês implementou a controversa Lei de Segurança Nacional de Hong Kong, com objetivo de impedir protestos e banir qualquer ato ou atividade que o governo considere como uma ameaça à China. A nova legislação também permite que as agências de segurança nacional do governo chinês operem na ilha. Desde que entrou em vigor, centenas já foram presos sob os novos termos, e outros vivem em constante medo de represálias, já que as condenações podem chegar a 30 anos de encarceramento. Os manifestantes continuam a buscar formas de continuar com o movimento, e como o próprio título do documentário sugere, eles não vão se dispersar

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