Disque Amiga para Matar tece uma narrativa de erros

O texto contém spoilers apenas da 1ª temporada, cuidado (Foto: Reprodução)

Vitor Evangelista

A turma do Scooby-Doo sempre se metia em enrascadas antes de solucionar seus mistérios. Daphne, Velma, Salsicha, Fred e Scooby fazem o bem, geralmente erram no meio, mas o final é feliz. Disque Amiga para Matar, protagonizada por Linda Cardellini, a Velma dos filmes dos anos 2000, segue a mesma premissa. Sua personagem Judy Hale se junta à Jen Harding (Christina Applegate) para se equivocar e meter os pés pelas mãos. A dupla continua encobrindo assassinatos na 2ª temporada mas, acreditem, é tudo com boas intenções.

Recapitulando o destemido primeiro ano: Jen e Judy se conhecem num grupo de terapia de luto. Jen perdeu o marido atropelado e Judy sofreu uma série de abortos espontâneos. Elas se aproximam e passam a morar juntas após o noivo de Judy, Steve (James Marsden), acabar a relação. A grande virada da temporada é que foram os dois os responsáveis pela morte do marido de Jen. Ela descobre, surta e chora, mas perdoa a amiga. Judy, ressentida com Steve por arrumar outra namorada, o denuncia à polícia por lavagem de dinheiro. Enfurecido, ele vai até a casa de Jen atrás da ex, mas não a encontra.

Os últimos momentos da finale revelam uma briga feia entre Jen e Steve. Um telefone toca, Judy atende. É Jen quem está falando do outro lado da linha. A imagem abre, a câmera se afasta. E, no quintal de Jen, vemos um corpo boiando na piscina, sangue mancha a água e Jen admite o crime à amiga. Elas precisam se unir para não serem pegas. Os clichês surgem à superfície, mas a criação de Liz Feldman cozinha uma narrativa deliciosa a quem assiste. A trama do 2º ano parte dessa premissa, mas cresce como fermento no bolo e, dez episódios depois, continua intrigante.

James Marsden retorna ao seriado num papel secreto, que oferece ao ator uma gama de tons à trabalhar (Foto: Reprodução)

A segunda temporada navega entre mares de comédia e drama. O que não é novidade alguma, se observarmos as séries que fazem sucesso nas premiações. As novas comédias abandonaram o engessado modelo de sitcom, o número de episódios diminuiu e as tramas ‘da semana’ deram espaço para roteiros que costuram a ‘história da temporada’. Atlanta, Barry, Fleabag, Glow e The Marvelous Mrs. Maisel são alguns exemplos. Até mesmo produções que mantém fidelidade às sitcoms, como Brooklyn Nine-Nine e Schitt’s Creek, encontram subterfúgios narrativos para não cair na mesmice. O investimento agora não é mais no riso pelo riso, as prioridades são o crescimento e a evolução do enredo. 

Pelo ano de estreia, Christina Applegate foi indicada a tudo que pôde: Emmy, Globo de Ouro, SAG, sempre na categoria de melhor atriz cômica. O reconhecimento da indústria acendeu um holofote na produção, que foi assistida, comentada, teorizada. Nesse retorno, Applegate (que já guarda na estante Emmy de Atriz Convidada por Friends) só tem espaço para crescer. Sua explosiva personagem é um prato cheio para a inserção de nuances. Dito isso, espere uma tonelada de fucks saídos dos lábios de Jen, um chororô desenfreado e sequências que abusam da versatilidade da intérprete. Em termos narrativos, Jen tem muito a fazer no novo ano. Além de encobrir o assassinato de Steve, ela engata um possível-novo-romance, convive com as excentricidades de Judy e lida com as bombas que o filho adolescente joga em seu colo.

Linda Cardellini, embora ignorada pelos sindicatos e prêmios, dá um show interpretando a emocionalmente danificada Judy Hale. A atriz aperfeiçoa suas expressões e reações, agora todo sentimento é aumentado na vigésima potência. Judy sofre por nunca ter dado adeus ao ex-noivo, combate sua língua solta e também encontra espaço para um novo relacionamento. A naturalidade com que o roteiro insere essa camada da sexualidade de Judy merece evidência. Os acontecimentos progridem naturalmente, de forma doce. Nós, como espectadores, assistimos sorrindo seus caminhos para a felicidade. Mesmo sendo uma dupla de assassinas (sem querer querendo), as protagonistas são amorosas de acompanhar, tanto por competência do texto e direção, quanto pela química estupenda de Applegate e Cardellini.

Contando com dez episódios de meia hora cada, a série convence com bons ganchos e uma narrativa cheia de vitalidade (Foto: Reprodução)

Disque Amiga para Matar, o título traduzido pela Netflix do original Dead to Me é polêmico entre os fãs. Há quem diga que a tradução não literal soa cafona ou inverossímil. Todavia, enquanto o nome em inglês evidencia um estado de espírito das personagens, a versão nacional instiga mais. A alusão ao telefone vincula ares conspiratórios ao miolo da série. E o fator brega do nome entra em total convergência à qualidade do produto. Essa antítese textual, anterior mesmo ao play nos episódios, marca Disque Amiga para Matar numa insistência ao erro e ao inconvencional para lacear seus limites. 

Entre goladas de vinho e corridas matinais, Jen e Judy funcionam para errar. Suas falhas costuram a trama do ano dois. Os personagens periféricos são alocados na narrativa central, adivinhem, por erros das protagonistas. O casal adolescente (Sam McCarthy e Sadie Stanley) é imprudente, a detetive Perez (Diana Maria Riva) fareja mentiras e a enlutada Eileen (Frances Conroy) cultiva apreensão. Todas ações dos coadjuvantes são geradas por brechas da dupla de Js.

Em Disque Amiga para Matar nada é desperdiçado. Chega a soar cômica a maneira que os mesmos dez personagens interagem à rodo na narrativa. Quase como se apenas aquele número restrito de pessoas habitasse Laguna Beach. Fazer vista grossa às coincidências é mais proveitoso. O roteiro da série, em sua maioria escrito por mulheres, amarra as pontas organicamente e sintetiza grossas reações em cadeia. A direção, também assinada por elas, é complacente com a dupla de criminosas e busca extrair o máximo das atrizes, seja por longas tomadas sem corte ou por cenas carregadas de emoção e explosão.

De qualquer maneira, o título nacional não anula o original, use o que melhor te agradar (Foto: Reprodução)

Muito mais que a mera continuação do ano anterior, a segunda temporada de Disque Amiga para Matar eleva seu material por completo. As atuações transbordam honestidade e fogo, o roteiro sutura as tramas menores ao bolo completo e a direção caça meios de florescer, na mesma moeda, o brutal e o sensível. A certo momento, uma deles questiona WWJD? (What Would Judy Do?) para o que a outra rebate What Would Jen Do?, e dessa forma, a série não se presta ao inevitável clichê de inverter os caricatos papéis.

Nessa investida, a ‘tramédia’ Disque Amiga para Matar se revela mais próxima ao real do que esperávamos. Judy e Jen não mudam suas personalidades por completo, na verdade elas absorvem o que cada uma oferece de melhor e abraçam para si. Assim como aqui fora, os erros são parte importante do caminho. E, ao menos dentro da tela, quando o coração está no lugar certo, continuaremos a assistir suas redenções.

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