Ninguém é cancelado no Território Lovecraft

Por mais que a publicação de Território Lovecraft seja recente, Matt Ruff revelou que essa ideia germina em sua mente desde os tempos da faculdade (Foto: Fright Like a Girl)

Vitor Evangelista

O termo cultura do cancelamento é tão novo quanto as pessoas que o levam a sério. Atribuído à atitudes consideradas erradas, o ato de cancelar alguém busca anular sua voz, e apagar quaisquer de suas contribuições. O que fazer, entretanto, quando o indivíduo digno de ser cancelado está morto há 83 anos? Para Matt Ruff, autor de Território Lovecraft, o certo é não fazer nada que se assemelhe ao cancelamento. Eis o impensável: ele raciocina e entende, adivinhem só, que nem tudo é simples como dois mais dois são quatro.

Howard Phillips Lovecraft é considerado o pai do horror cósmico, ‘gênero’ que o próprio cunhou, escrevendo contos e novelas que misturavam o medo do desconhecido com figuras de fora deste planeta. Além disso, Lovecraft era um racista de primeira. Crescido no período de ascensão do fascismo e do nazismo, não é surpresa que ele se identificou com os ideais de Adolf Hitler, fazendo isso refletir em suas obras. E é aí que entra outro escritor, desta vez, Matt Ruff, que teve a brilhante ideia de ressignificar tudo que o falecido racista criou, colocando pessoas negras no centro de narrativas essencialmente lovecraftianas.

O tal território Lovecraft fica em Massachusetts, abrigando locais reais e fictícios da criação do defunto; na foto vemos Matt Ruff, ao lado de seu livro (Foto: Reprodução)

Assim nasce Território Lovecraft (Lovecraft Country, no original), publicado em 2016 nos Estados Unidos e esse ano no Brasil, com tradução de Thais Paiva. Narrando a fantástica jornada de Atticus em busca do pai, que está mantido refém numa região da América segregada dos anos 50, o tal Território Lovecraft, onde se passam a maioria das histórias do autor. Ressaltando o fator metalinguístico da obra, logo de cara o tio de Atticus, ou Tic, pontua o racismo do escritor, mesmo sendo dono de obras revolucionárias para o gênero.

É necessário exercitar o bom senso, e o livro de Ruff pinga seus is logo de cara. Não podemos apagar o trabalho de alguém ou anular seus feitos. O que podemos (e devemos) fazer, é entender as problemáticas. A trama em momento algum relativiza ou passa a mão na cabeça sebosa do defunto, mas faz algo muito mais avassalador: coloca as ‘minorias’ que ele tanto desprezava como heróis de suas jornadas. 

Quer trama mais atual que isso? Não à toa, a HBO adaptou para a TV a história e, assim, surgiu a (até então) série dramática Lovecraft Country, que exibiu o capítulo final no último domingo. Muito mais incisiva e bem sucedida que o material original, a produção comandada com a astúcia de Misha Green carrega o legado de Watchmen, outra arrebatadora série com forte temática racial.

A criação de Diana substituindo a figura de Horace foi um vigor para a trama: no lugar do terrível conto ‘Horace e o Boneco do Diabo’, a série nos apresentou ao ótimo e assustador Jig-A-Bobo (Foto: Reprodução)

A própria contracapa do livro da Intrínseca entrega o fator incomum de sua construção: ‘estruturado ao mesmo tempo como uma coletânea de contos e um romance’. As nove histórias seguem uma linha narrativa principal, dessa jornada de Atticus enfrentando Deus e o mundo, ainda que foque em distintas figuras desse rico ecossistema. Conhecemos a família de Tic, seus amigos e inimigos. A prosa de Matt Ruff se empodera de uma fluidez líquida, tornando a leitura corrida, mas em momento algum atropelada ou esbaforida. 

Outro ponto de destaque é que Matt Ruff é um homem branco, que acaba escrevendo sobre o racismo nos anos 50. Todavia, a abordagem escolhida nas palavras e situações parece inserir um comentário sutil e direto, mas nunca tomando para si uma discussão que não lhe cabe. O que, inevitavelmente, alavanca o fator mais agressivo na abordagem televisiva da trama, encabeçada por profissionais negros. 

A escrita de Ruff é uma mão cheia para a adaptação. Os contos são curtos e deixam muito em aberto. Não na trama em si, mas em quesito narrativo, descritivo e temático. Ele lança ideias ao ar, denota os pontos de pressão mas nunca ata os nós, o laceio fica na cabeça de quem lê, ou, o mais comum, de quem sintonizou na HBO nas últimas dez noites de domingo.

Jordan Peele, diretor de Corra! e Nós, se interessou pela trama e logo conseguiu um acordo com a HBO, chamando a talentosa Misha Green para comandar a coisa toda (Foto: Reprodução)

Por mais que Território Lovecraft seja recheados de histórias que ficam na cabeça mesmo após suas finalizações, o livro não se redime na hora de realmente vitaminar seus acontecimentos. Ainda mais pelo formato episódico da narrativa, existem lacunas temporais que, à primeira vista, incomodam o leitor apaixonado por detalhes minuciosos. Isso até Ruff revelar exatamente sobre o que está escrevendo.

Atticus é o Sol desse sistema. O personagem, por vezes pedante e desinteressante, carrega nas costas todas as profecias e escolhas de Território Lovecraft. O que é uma pena, considerando a riqueza de seus coadjuvantes. Esse efeito de potencial desperdiçado grita alto quando lemos excelentes contos de Letitia (A Casa Assombrada dos Sonhos) e Ruby (Jekyll em Hyde Park), para depois sermos sugados na atmosfera bunda mole de Tic.

O comando de Misha Green na adaptação da HBO, aliado à produção de Jordan Peele, remendou esses furos de excitação narrativa. Lovecraft Country soube uniformizar seus moldes e, por mais que Tic ainda seja central ao todo, Leti, Ruby, Hippolyta e Montrose ganham as camadas e momentos que deveriam ter recebido nas 352 páginas do livro. O drama de TV foi mais além, transformando Horace em Diana (ainda bem), e investindo na excelente figura de Ji-Ah (no melhor episódio da série). Chega a ser curioso encontrar um livro que não seja melhor sucedido que sua versão adaptada..

É claro que não esperamos fins trágicos nessa narrativa de redenção, mas a conclusão de Território Lovecraft deixa a desejar pelas conveniências e até a simplicidade que evoca (Foto: Reprodução)

A mera existência, e sucesso, de Território Lovecraft coloca uma pulga atrás de nossas orelhas para uma importante questão: será que isso vira tendência? O que não falta atualmente são figuras consolidadas que, num mundo de conto de fadas, seriam, enfim, canceladas. Matt Ruff pode ter aberto portas para, quem sabe, daqui algumas décadas, alguém publicar o Território Rowling, com os bruxos enfrentando os males de Hogwarts e os medos da homofobia e da transfobia, que sua infeliz autora tanto suscita e sublinha.

Por enquanto, nos resta a especulação e a problematização. Essa investida do livro, saindo da bolha do cancelar e esquecer, e usando a modernidade como arma de evolução e prosperidade, veio em hora certa. Enquanto dentro das páginas Território Lovecraft se beneficia da riqueza dos contos episódicos que homenageiam o horror cósmico e o gênero pulp, fora delas nós nos beneficiamos de uma leitura interessante no âmbito de entretenimento e do conhecimento. Me parece uma troca justa.

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