Ted Lasso marca um gol olímpico

Cena da série Ted Lasso. Na cena, vemos pessoas olhando para a frente com cara de assustados. No centro e em destaque está Ted Lasso, um homem branco, de cabelos castanhos e bigode grosso. Ele usa um moletom preto e tem um semblante surpreso e triste. À esquerda está Nathan, mais baixo que Lasso, homem de pele marrom e cabelos pretos. À direita está Beard, com cavanhaque castanho claro, boné azul e a boca aberta em sinal de surpresa. Ao fundo, vemos mais uma porção de pessoas espantadas, a cena se passa logo na beira do gramado de um jogo de futebol.
Tão rara como a bola que parte do escanteio e acaba no fundo das redes, Ted Lasso é uma em um milhão, uma série cheia de coração e bem-estar (Foto: Reprodução)

Vitor Evangelista

Não é sempre que uma comédia esportiva consegue sair dos dramas de seu nicho e conquistar a grande audiência. O costumeiro é que as histórias se restrinjam aos jargões do gênero, repetindo estereótipos sexistas. Ted Lasso, original da Apple TV+, dribla todos esses problemas e marca um golaço. Jason Sudeikis protagoniza as aventuras de um treinador de futebol americano que se muda para o Reino Unido a fim de comandar uma equipe da Premier League. O problema? Ele não manja nada do futebol convencional.

O choque cultural desencadeado por Ted Lasso é o primeiro fator de ignição do seriado, que chegou ao streaming no fim de 2020 e é candidato forte aos prêmios de Comédia do Emmy 2021. O otimismo do yankee conflita com a frieza e o calculismo dos londrinos, e o bom humor que Lasso emprega em seu comportamento ganha o espectador logo no seu desembarque na Terra da Rainha. Afável, sentimental e empático como ninguém, o protagonista ilumina e aquece os ambientes que habita.

Assistir, no contexto político-social de 2020, alguém tão leve e querido, é um presente e tanto dos criadores de Ted Lasso. De fato, o personagem não é novo no pedaço: essa persona falastrona e desbocada surgiu na NBC como uma sketch cômica. Sudeikis, então, ao lado do showrunner Bill Lawrence, desenvolveu a ideia para um programa próprio, mas o ator sabia que, para sustentar uma temporada de dez episódios, Lasso precisaria de mais do que uma porção de gírias da área.

Cena da série Ted Lasso. Na cena, vemos Ted Lasso em destaque, sorrindo e com um olhar confiante. Ele é um homem branco, de cabelos castanhos e bigode grosso, usando camisa azul clara e por cima um suéter azul mais escuro. Ao fundo e desfocado está Beard, um homem branco, de cavanhaque castanho claro e boné azul, de braços cruzados.
Jason Sudeikis já fez parte do Saturday Night Live e, assim como a maioria dos comediantes, deixou o programa para focar em trabalhos individuais (Foto: Reprodução)

Entra em cena a liberdade criativa que a Apple TV+ deu aos desenvolvedores do show. Primeiro de tudo, eles poderiam usar o CT de um clube real de Londres, o que era benéfico ao quadrado, tanto por dar mais vitalidade aos cenários, quanto por imergir o elenco naquela rotina esportiva, começando pelos vestiários suados até o brilhoso campo verde onde, independente do porquê, não pode pisar na grama!

O time do mundo real que espelhou a equipe de Lasso é o Crystal Palace. Um dos produtores do seriado era parente de um dos donos do Crystal, o que facilitou ainda mais o negócio. E, para melhorar a oferta, o fictício AFC Richmond perderia de lavada para o Palace logo no segundo episódio, Biscuits. A cereja do bolo da série é justamente criar algo imaginário, mas manter todo o contexto anexado ao mundo real: o Richmond joga até contra o Manchester City, alimentando uma rivalidade entre duas gerações de jogadores. 

Roy Kent (Brett Goldstein) representa a velha guarda, um meio campo mais velho que já não joga como outrora. O personagem foi inspirado no real Roy Keane, que jogou no outro Manchester, o United. Seu embate acontece com a juventude e a rebeldia de Jamie Tartt, papel de Phil Dunster, munido de arrogância e que adora exibir o corpão. Os dois batem cabeça ao longo dos 10 capítulos, e ainda sobra espaço para a inserção do triângulo amoroso com Keeley (Juno Temple).

Cena da série Ted Lasso. Na cena vemos os integrantes do triângulo amoroso sentados à mesa. À esquerda está Roy, homem branco, mais velho, de cabelos pretos e barba da mesma cor. Ele está com as pernas cruzadas e veste uma camisa cinza, olhando de modo fulminante para Jamie Tartt, que está no lado oposto da foto, à direita. Tartt é um homem branco, de 23 anos, com pele branca, cabelo escuro e penteado molhado, usando jaqueta preta e calça jeans. Ele olha para Keeley, que está no meio deles, sentada ao centro da foto. Ela é uma mulher loira, branca e segura uma caneca branca com as duas mãos. Na mesa, vemos dois vasos pequenos e um copo descartável de café. Ao fundo, vemos janelas desfocadas, árvores e um abajur amarelo.
Jason Sudeikis e a série marcaram presença nas premiações do início do ano: foram 2 indicações ao Globo de Ouro (e 1 vitória), 3 ao Critics Choice Awards e 2 ao SAG (Foto: Reprodução)

Dando carrinho nos estereótipos sexistas e de gênero, os roteiristas de Ted Lasso (sob o comando do chefe de redação Sudeikis) escrevem figuras cheias de camadas e com espaço para crescimento e redenção. Logo que chega no vestiário, o treinador faz questão de cobrir os recortes pornográficos femininos que decoram o ambiente, deixando claro que ali, sob sua gerência, não existe espaço para esse tipo de piada datada. No lugar, assistimos o erotismo dormente do futebol ser explorado nas entrelinhas. Os corpos esculturais, formas bem definidas e peitorais sarados ilustram todas as cenas que podem, e quem comenta a suculência da sensualidade são as mulheres.

A chefe de Ted Lasso, Rebecca Welton (Hannah Waddingham), recebe tratamento de princesa no arco da primeira temporada. Ela começa o Piloto com o plano maquiavélico de contratar Lasso apenas para ele afundar o time e destruir o legado do ex-marido, mas suas ações revelam uma faceta fragilizada, ao invés da vilã sem coração. O treinador estimula aqueles próximos à ele, ele é uma sessão de terapia ambulante aos europeus, mesmo que nunca tome consciência desse superpoder secreto.

E esse modo de vida de Lasso não resvala na positividade tóxica ou na felicidade nociva, como a Poliana ou a Anne. Jason Sudeikis oscila entre os picos de humor e amor que emana, ele justifica seu comportamento com os óculos amarelos que ajudam a superar seus próprios demônios e dores. A série investiga o casamento distante do americano, além de dar ao ator a chance de atuar nas nuances. Make Rebecca Great Again, capítulo que sai do ambiente futebolístico para desanuviar o clima da série, coloca Ted Lasso na corda bamba e relembra o espectador que ele é humano como todos nós.

Cena da série Ted Lasso. Na cena vemos Rebecca, uma mulher branca, na casa dos 50 anos, de cabelos loiros platinados e vestido branco. Ela está sentada à sua mesa, com as mãos dadas e uma expressão de dúvida e descontentamento no rosto. Na mesa, estão seu laptop branco, sua bolsa branca e mais uma porção de objetos fora de foco. Ao fundo, também desfocados, estão dois quadros.
Você pode reconhecer a intérprete de Rebecca como a Septã Unella de Game of Thrones ou uma das mães de Jackson em Sex Education (Foto: Reprodução)

O futebol é usado como recurso narrativo, e a montagem do seriado consegue emocionar quando retrata momentos das partidas. A trilha sonora ensurdece enquanto a câmera desacelera, um gol é marcado, um pênalti é perdido. Somos torcedores do Richmond, somos críticos ao estilo de treinador de Lasso, somos parte daquela família. A dramatização cômica do esporte no Reino Unido acende a chama de curiosidade para uma produção tupiniquim nesses mesmos moldes.

Acompanhar os bastidores de um Flamengo ou São Paulo da vida, os percalços, rivalidades, romances, subornos e a recompensa emocional de fazer parte de algo. Nathan (Nick Mohammed), um arquétipo comum de personagem sem confiança e que sofre na mão dos héteros machões, é acolhido pela empatia de Lasso; Keeley movimenta uma jornada independente de seus namoros; o assistente Beard (Brendan Hunt) ganha tridimensionalidade peculiar; e Sam (Toheeb Jimoh) sai da sombra das caracterizações racistas e preguiçosas da África. Ted Lasso faz tudo isso com sutileza, enquanto surrupia suas qualidades pela lateral e marca um gol de placa

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