Caravana do senso crítico passa por Bauru com o grupo gaúcho Ói Nóis Aqui Traveiz

“Nenhuma cultura imposta é mais bela do que a nossa” (Augusto Boal)

Sesc e Rui Barbosa elucidam: trajetória de 40 anos de companhia gaúcha “Ói Nóis Aqui Traveiz” é referência do teatro brasileiro e do teatro de resistência, atraindo plateias e admiração por onde passa. Dessa vez, Bauru foi a presenteada.

Camila Araujo

O que me chamou atenção no grupo, à primeira vista, foi a camiseta estampada pelo busto de Carlos Marighella vestida pelo senhor alto, de longos cabelos grisalhos. A coincidência é que eu, naquele mesmo dia e local, portava na bolsa o exemplar laranja e pesado do livro que traça por olhares lúcidos de Mário Magalhães a biografia de Marighella, O guerrilheiro que incendiou o mundo. Acaso ou destino, isso selou o encontro, que se repetiria mais tarde naquele dia.

O senhor de trajes “subversivos” se aproxima e explica que eles lá de Porto Alegre haviam montado um teatro reverenciando “Mariga” e arremata no convite para assistir às apresentações que fariam na cidade. Paulo Flores é ator gaúcho que participa há 40 anos do Ói Nóis Aqui Traveiz, grupo teatral cuja participação na luta contra as (neo)colonizações e nos movimentos sociais de causas ambientalistas e identitárias – gênero, raça, lgbt – data desde a Ditadura Militar – e marcham com convicções: “nunca perdemos de vista que essas questões fazem parte da luta de classes, que é o que tem mantido coerência no grupo”.

Segunda apresentação do grupo aconteceu no seio da cidade, às 15 horas do dia 20 (Foto: Camila Araujo)

Primeira experiência

Bauru foi contemplada pela bem-vinda visita do grupo como parte da programação de férias do Sesc. Na noite do dia 19 de julho, a fila para o teatro era expressiva, embora um pouco tímida se comparado aos 165 lugares disponíveis no auditório. A peça “Evocando Mortos: Poéticas da Experiência” é um teatro de Vivência, onde o ato real mescla-se com o ato simbólico, o limite entre arte e vida se condensa e a reflexão, a práxis, são apresentadas ao espectador, que se torna contribuinte do momento.

Tânia Faria, a atriz que linda e criticamente atua na peça e também coordena o grupo, despe-se frente aos que ali buscaram vê-la. Não de maneira vulnerável, acuada, mas ao contrário, sua desmontagem fomenta reflexões e demonstra resistência. O recado é claro: não estamos sozinhas e é possível mudar. Somos seres emancipáveis e o que está a nossa volta é maleável, capaz de se transformar. Tânia declara seu amor ao fazer teatral de inúmeras maneiras, sob inúmeros personagens. Com intimidade às pessoas ao seu redor, ela revela segredos e histórias de seu percurso artístico. Incorpora seus espíritos – almas teatrais já vividas e reencarnadas – e nos mostra momentos. Vale-se de máscaras, cantos, batuques, elementos ritualísticos, e até de um rádio que pertence ao cenário a todo momento mas só toma corpo em um pequeno trecho de música entre uma conversa e outra, as quais costuram os trechos de Kassandra In Process; Viúvas: Performance Sobre a Ausência; Hamlet Máquina; A Missão – Lembrança de Uma Revolução e Medeia Vozes.

Tânia Faria incorpora diversos espíritos-personagens e traz a tona a urgente questão de gênero (Foto: Rafael S / Divulgação)

A ferramenta-teatro e a questão de gênero

É urgente gritarmos sobre a questão de gênero, é urgente nos reconhecermos uns nos outros, e usar da ferramenta que temos ao nosso alcance para ir a luta. Tânia encontra sua ferramenta no teatro, espaço de sensibilização e união. Ela trabalha com energia para que de alguma maneira aquilo posto em cena seja levado para casa, como disseminação e difusão de ideias. Ideias com corpo e estrutura rígida. Para além disso, com sua trajetória, ela inspira atuadores que estão dúbios até se depararem com o teatro de resistência.

Ao final da peça o convite se estende para o ar livre. Caliban se apresenta no dia seguinte, sob a sombra do sol das 15h na praça Rui Barbosa, coração bauruense.

Na saída, recebo um embrulho de papel seda branco, envolto por um barbante vermelho. Dentro, uma zine com um desenho se decompondo na capa e o título Desmontagem. Os sentidos são aguçados, não só o olhar e o toque, como também o cheiro que exala de toda a composição. Algo que se assemelha a bambu… As ilustrações que compõem o folheto são de Alessandro Muller, e dentro estão textos nos auxiliam na deglutição e digestão do processo vivido junto de Tânia. Tudo que é sentido e pensado durante a apresentação é identificado sob peculiaridades e traduzido em palavras. É impossível discordar de Letícia Virtuoso, atuadora do grupo e graduada em Ciências Sociais pela UFRGS, quando ela diz em seu texto, o primeiro da zine, que “não é uma demonstração técnica do trabalho da atriz, mas sim, uma incrível experiência afetiva e poética da sensibilidade e da luta das mulheres no meio artístico e social”. Ademais, sobre a questão de gênero, “é urgente urrarmos contra a violência que sofremos, e através da qual percebemos a vida. Pois antes de tudo, somos mulheres”.

Desmontagem: Todas as sensações são necessárias para viver a experiência (Foto: Camila Araujo)

A tempestade é aqui e em todo lugar

Na Rui Barbosa, algumas pessoas se concentram em torno de uma roda em que no meio movimenta-se um pessoal todo fantasiado, as roupas e máscaras que fogem ao costume: certamente aguça atenção da vista dos transeuntes! E alguns param. A estudante de psicologia, a admiradora de teatro, o ator local, o artista, o grupo de ciclistas, os filhos que puxam as mães pelos braços, o funcionário do Sesc, o funcionário de uma loja qualquer do centro que está ali no seu descanso da tarde, os marginalizados que fazem da praça seus lares em dias amenos como aquele. Essa é a grande surpresa, teatro de rua que se difere do teatro do dia anterior, por diversas particularidades, é claro.

Mas o mais rebelde de todos é pelo público ser extremamente diversificado. Alguns que se concentram vem a convite de jornais, redes sociais e boca-a-boca. Outros são pegos de surpresa, programa inusitado no meio da tarde, lazer do mais refinado tipo: aquele que faz pensar, e propõe mudança. A história de Caliban remonta a nossa própria história, da América Latina, de colonizados pela lógica do sistema – exploratório e escravista -, sob a tempestade do conservadorismo o qual estamos vivenciando hoje (vide golpe contra a ex-presidente Dilma, a idolatria de um juiz escrachadamente imparcial e sem escrúpulos e o aumento do número de eleitores de Bolsonaro).

Caliban e a lucidez das 15 horas, na Rui Barbosa (Foto: Camila Araujo)

Como consequência, o retrocesso dos direitos sociais e da luta pela autonomia – econômica, política e cultural -, resultando numa população subjugada. O pensamento de que todas aquelas pessoas ali, que estão só passando e se deparam com o espetáculo, crianças com o olhar concentrado nas enormes máscaras e estruturas delineadas para o show, o riso sincero, são frequentemente poupadas de lazer e cultura por não serem merecedores? Ou por morar “longe demais”?

“Ói Nóis…” é didático e dialético. Ao final da peça, quando a concentração já se dispersa e o grupo fica ali a disposição para trocar palavras e afetos com seu público, alguns responsáveis saem distribuindo um encarte que vai elucidar todo o contexto da apresentação. Somos contemplados na volta para casa com um registro-memória do dia, capaz de arrancar ainda mais alegria dos corações arquivistas.

Didático (Foto: Camila Araujo)

É preciso mudar!

O teatro de resistência é ferramenta indispensável aos nossos dias. Lindo de ver, e de viver. Dos céticos, aguça a curiosidade de se refletir sobre as questões ali pautadas. Da resistência, aumenta a vontade de ir ao front de batalha. E dos admiradores do teatro, que vivem na iminência de se jogar nessa arte, aumenta a vontade de largar tudo e construir junto com o grupo gaúcho essa saga histórica de 40 anos – rumo a construção de um mundo emancipado.

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