Hard Candy: a doce pitada egóica de Madonna

Leandro Gonçalves e Leonardo Oliveira

De beleza estonteante e orgulho não comedido, Narciso encontrou sua ruína na admiração exagerada pela própria imagem. Ao ver a si mesmo refletido nas águas de um bosque, o jovem filho do deus Cefiso apaixonou-se pelo seu respectivo eu e, hipnotizado, definhou diante da representação de seu rosto.

Em Hard Candy (2008), Madonna encarna a figura narcisista exemplificada pela fábula grega. Porém, diferentemente do pobre menino que sequer conhecia a si próprio, a material girl comprova ter completo domínio sobre a personagem que construiu durante sua carreira. Não intimidada pelo próprio poder, Madonna canta sobre ainda ser a melhor.

Lançado em abril de 2008 e responsável por suceder o dançante e energético Confessions on a Dance Floor (2005), o décimo primeiro álbum da artista segue o ritmo ditado por suas confissões anteriores, dando continuidade à busca por conquistar as pistas de dança.  A estratégia bem sucedida adotada após o pretensioso American Life (2003) — este uma clara crítica ao comportamento de seu público consumidor — buscou reaver a popularidade de Madge entre os americanos, recorrendo às picapes dos clubes noturnos.

Dura de roer: de gosto questionável, o encarte do disco expõe a dicotomia entre doçura e dureza proposta pela era mais açucarada de Madonna (Reprodução)

Se em Confessions Madonna nos mostrou seu potencial vanguardista e desenvoltura criativa, em Hard Candy o maior nome feminino da indústria fonográfica preferiu seguir tendências – e, deste modo, comprovou que ceder ao que lhe é contemporâneo pode ser uma escolha proveitosa. Seguir o ritmo daquilo que já era tocado não foi um ato despretensioso, pelo contrário.

Reunir Timbaland, Pharrell WilliamsDanjaKanye West (produtores que ditavam as tendências em sonoridade da época) e um Justin Timberlake em ascensão foi uma jogada ambiciosa, com riscos de tender ao genérico. Em outras palavras, uma aposta alta de uma jogadora que não costuma perder.

O disco, construído de maneira gradual desde meados de 2007, contém vocais adicionais de Timbaland e, principalmente, de Pharrell. Além disso, a tracklist mostra-se inegavelmente autoral, pois Madonna é creditada em todas as composições.

Ainda que autobiográfico até certo ponto, o disco é superficial se comparado a empreitadas mais orgânicas da artista, como o primoroso e profundo Ray Of Light (2008). Isso, no entanto, não desqualifica o trabalho, mas corrobora com seu propósito: aqui, Madge quer reafirmar seu papel de protagonista, reaver a figura de primadonna no cenário pop e mainstream, e não que a conheçamos sob a ilusória óptica dos “trabalhos pessoais”.

Os louros do sucesso deram as caras assim que o lead-single 4 Minutes foi lançado. A música tem a sonoridade mais forte e destoante do álbum, tendo possivelmente sido concebida já com a pretensão de se tornar o hit do trabalho. A letra é, de longe, a pior dentre as 12 composições do disco. Os versos genéricos preenchem uma construção lírica cujo único intuito é entreter através da criação de sentidos pautados em uma espécie de eufemismo para falar sobre sexo. A produção, por outro lado, é impecável. O instrumental bem estruturado deixa claro a intenção de conquistar pelo ritmo, e não pela mensagem.

Os quatro minutos da Rainha do Pop — produzidos por Timbaland, Danja e JT — foram uma jogada comercial bem sucedida: a faixa figurou como a mais tocada de Madonna desde Hung Up (2005) e, meio ao boom do mercado fonográfico digital, ainda foi um bom primeiro passo de Madonna no início da era dos downloads.  Mesmo tendo sofrido com vazamentos, 4 Minutes já em seu segundo dia de vida foi alçada da sexagésima oitava posição na Billboard Hot 100 à terceira colocação.

A pista de dança de Madonna é claramente nostálgica, já que até ouvidos menos atentos sentiriam a carga oitentista que permeia várias faixas do álbum. Mas, a cartada certeira é o minucioso trabalho que traz essa influência junto ao hip-hop tão popular à época, o que acabou levando o trabalho de M-Dolla (a persona boxeadora que a cantora adotou) a uma nova geração de fãs.

A sonoridade urbana protagonizada, na época, por artistas como Nelly Furtado e, curiosamente, Mariah Carey (nome surgido em oposição à material girl na década de noventa), foi adotada por Madonna, que mostrou sua versatilidade em explorar alternativas e artistas em destaque — capacidade esta que a acompanhou, também, em seus últimos trabalhos e influenciou sua recente relação com o EDM.

O segundo singleGive It 2 Me, possui letra e produção que conversam mais com o restante da obra. Aqui, Madonna lança-se ao desafio: sob sua própria experiência, mostra que não precisa se provar, mas mesmo assim encara com muita destreza o que vier. O videoclipe foi feito de forma a juntar o útil ao útil, pois foi gravado nos bastidores de uma sessão de fotos de Madonna para edição britânica da revista ELLE, mesclando fotos e takes de Madge dançando e posando para a câmera.

O amor à distância foi o tema sobre o qual o último single da era discorreu: Miles Away esconde na animação de sua sonoridade versos cheios de uma  melancolia proporcionada pelo afastamento da pessoa amada, além da dificuldade dessa relação insuficiente e defasada.

Apesar de seu lançamento nas rádios norte americanas em novembro de 2008, a música só ganhou um vídeo em meados de 2009 com a utilização das imagens da turnê, onde o clima intimista proposto pela canção se energizou com o fervor da multidão, proporcionando uma performance simples mas cheia de emoção.

Tanto auto centramento nas letras mostra o conhecimento da cantora sobre si mesma. O momento de Beat Goes On é, de maneira clara, uma grande autorreflexão. Em uma fase em que questões sobre a carreira, como o fim do longínquo contrato com a Warner Bros, e o desgaste de seu casamento com o diretor inglês Guy Ritchie podem ter posto Madonna para baixo, levando-a a fazer dessa música uma injeção de autoestima, estimulando a si mesma a superar os obstáculos. Nesta faixa, ela parece dialogar consigo mesma, como exemplificam os versos: “You know exactly who you are / The time is right now, you got to decide / Stand in the back, or be the star”.

“Muitas vezes eu quis me expressar artisticamente de uma maneira que eu acredito que não deixaria meu ex-marido confortável”, Madonna sobre Guy Ritchie (Foto: Reuters)

O restante da tracklist mescla investidas ora açucaradas, ora rígidas. Na agressiva e provocativa She’s Not Me, a Rainha do Pop proclama ser única. Jamais superada, sequer igualada, seja por qualquer mulher em outros possíveis relacionamentos de seu  affair, ou, em um sentido ainda mais interessante, por qualquer artista do showbiz. Madonna ri da indústria ao dizer que nunca haverá outra de si dentre as invariáveis versões genéricas que o mercado produz, na tentativa de reproduzir seu potencial midiático.

Dado sentido fora usado magistralmente por Madonna durante sua turnê The MDNA Tour (2012) como um recado certeiro à Lady Gaga devido à semelhança entre Born This Way, single de trabalho de Gaga naquela época, e a clássica Express Yourself.

Seguindo a proposta conceitual do álbum, os shows da Sticky & Sweet Tour (2008-2009), oitava turnê da carreira de Madonna, expressam a última persona egocêntrica da intérprete. A série de apenas 85 apresentações, realizados em 32 países, incluindo o Brasil, arrecadou mais de 400 milhões de dólares, tornando-se a turnê feminina mais lucrativa da história, recorde mantido até hoje.

Ao todo, cerca de 3,5 milhões de pessoas pelo mundo assistiram aos shows da turnê, a qual marcou o retorno de Madonna à América Latina após 15 anos sem realizar shows na região. Somente na América do Sul, onde gravou o DVD da turnê, em Buenos Aires, a cantora vendeu mais de 600 mil ingressos.

Inegavelmente mais sóbria do que a identidade visual do disco, a turnê celebrou a memorável carreira de Madonna e a atestou como maior entertainer já conhecida pela indústria. Energética, a artista domina o grandioso palco sem apelar para recursos pirotécnicos, incessantes trocas de figurino ou dezenas de dançarinos durante o concerto. Acompanhada de alguns poucos acrobatas vez ou outra, Madge preenche todo e qualquer espaço da gigantesca estrutura sem grande esforço. Ela é o espetáculo.

Diante de seu trono, Madonna nos mostra porquê é a rainha (Foto: Dave Hogan/Getty Images Europe)

Se, com o álbum, a cantora pretendeu retomar os holofotes argumentando ser a maior, a Sticky & Sweet foi o movimento preciso para relembrar o peso da coroa mantida por ela durante décadas. Além disso, a turnê nada mais é do que uma comprovação da visão visionária de Madonna: com a gradual queda do mercado fonográfico, indicado pelo decréscimo das vendas de CDs, os shows tornam-se a atividade mais lucrativa na música.

A visualidade proposta foi pouco trabalhada na produção e divulgação dos vídeos e infimamente em peças publicitárias. O único momento em que vemos o conceito mais explorado é durante as apresentações, que com sutileza expuseram uma sobriedade na cenografia do palco em contraponto com a dinâmica alegre e algumas vezes bem coloridas dos vídeos nos telões e também de alguns figurinos, além de M-Dolla estrelar a primeira interlude ao som de Die Another Day.

A doçura e dureza de Hard Candy tende a uma linearidade, sua sonoridade não tem pretensão alguma de ser inovadora, porém o poder criativo e muitas vezes egóico expostos nas letras de Madonna são apenas sinais de toda inteligência e perspicácia da não à toa denominada rainha do pop. O clima dance-pop se junta a todo know how em R&B e hip-hop dos produtores para dar vida a um álbum capaz de conquistar um novo público sem desapontar a fiel legião de fãs.

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